São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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'Utopia leva à catástrofe'

Na última parte desta entrevista, Vargas Llosa fala dos paralelos entre o Peru e o Brasil e conta como resolveu fazer um romance sobre a saga de Canudos.
Folha - Depois de toda a sua experiência política, afinal o sr. conseguiu descobrir, como queria o protagonista de "Conversa na Catedral", "onde foi que o Peru se fodeu" (risos?)
Llosa - Bem, creio que é um processo. Creio que não há um momento. São muitos momentos, um atrás do outro. Sabe que essa frase se converteu quase num estribilho? A toda hora a repetem, no Peru.
Folha - A América Latina teve nos anos 50 a utopia desenvolvimentista, nos anos 60 a utopia revolucionária, antiimperialista. Há ainda lugar para a utopia no continente? Os latino-americanos ainda podem sonhar?
Llosa - Tenho a impressão de que, felizmente, a América Latina está se livrando das utopias. Acho que as utopias políticas são muito más e sempre conduzem ao desastre. A utopia, há que orientá-la para outras coisas: a literatura, as artes, o indivíduo... Creio que o indivíduo pode ter sua própria utopia, mas a sociedade não pode embarcar num projeto utópico, porque o resultado é a catástrofe.
Creio que há que aceitar que o desenvolvimento tem de ser gradual. O importante é ir progredindo, não retrocedendo, e ademais simultaneamente em distintos campos. Os países que mais progrediram são justamente os que adotaram essa metodologia, não? Tenho esperança de que na América Latina isso esteja começando a ocorrer em muitos países.
Folha - Seu liberalismo é muito mais um pragmatismo que uma utopia?
Llosa - O liberalismo não é utópico. O liberalismo está brigado com a utopia. O liberalismo parte da premissa de que o paraíso não é deste mundo. A idéia da sociedade perfeita, do paraíso na Terra, sempre produz o inferno.
Progressos graduais, não retroceder, empreender batalhas muito concretas, isso é o que Popper chamava "piecemeal approach". Isso é o reformismo, na realidade, que está contra a utopia, contra essa sede de absoluto, de alcançar a perfeição. A sociedade é muito complexa, muito diversa, há muitos interesses contraditórios. Portanto, esse método de fazer tábula rasa do existente para construir do zero a sociedade perfeita sempre trouxe uma violência terrível.
Folha - O sr. não acha que, com o fim do comunismo e a abertura dos mercados do Leste europeu, a América Latina tende a ser deixada de lado pelos investidores internacionais?
Llosa - Acho que não, acho que a América Latina está em muito boa posição. Hoje em dia os mercados são mundiais. O país que se fecha a essa internacionalização é um país que se condena a ficar para trás. A América Latina tem muito que oferecer ao mundo.
A América Latina em 1993 foi a segunda região do mundo, depois do Sudeste Asiático, em atração de investimentos estrangeiros: US$ 55 bilhões. Basta que a América Latina comece a fazer o adequado para que imediatamente haja uma resposta. Um país como o Brasil apresenta possibilidades tão imensas que com um pouco de sensatez o país deverá entrar rapidamente num processo de desenvolvimento acelerado. Se isso foi conseguido pelo Chile, um país pequeno e que hoje cresce a um ritmo comparável ao dos países asiáticos, o que dizer do Brasil?
Folha - O Brasil aparece em sua vida numa série de coincidências: a primeira vez que fez sexo foi com uma prostituta brasileira (risos), a primeira reportagem que escreveu foi sobre um embaixador brasileiro etc.
Folha - É verdade. Que divertido. Não tinha me dado conta.
Folha - Como o sr. se interessou pela saga do Conselheiro, narrada em "A Guerra do Fim do Mundo"?
Llosa - Em 1972, por aí, o cineasta Ruy Guerra tinha sido contratado pela Paramount para fazer um filme e ele queria fazer algo que se relacionasse com a história de Canudos. O diretor da Paramount na França, que estava sustentando o projeto, me convidou para fazer o roteiro, de comum acordo com Ruy Guerra.
Eu conversei com ele, discutimos o que ele queria fazer. Eu não tinha lido "Os Sertões", de Euclides da Cunha, e foi então a primeira coisa que fiz. O livro me deslumbrou. Foi um dos livros que mais me impressionaram, um livro que me mudou um pouco a vida.
Trabalhei muito nesse roteiro, mas desgraçadamente o filme nunca foi feito. Desgraçadamente para Ruy Guerra, porque para mim deixou uma possibilidade formidável. Fiquei tão apaixonado pela história, pelos personagens, pelo ambiente, pela época, que decidi escrever o romance. Então continuei a trabalhar. Li tudo o que havia sido escrito até então sobre o assunto, depois viajei ao Brasil, estive em Canudos, em todo o Nordeste, no sertão baiano. Foi uma experiência realmente maravilhosa.
Foi a única vez que escrevi uma história que não era ambientada no Peru e nem no meu tempo.
Folha - O sr. está ansioso para visitar o Brasil?
Llosa - Muito, principalmente porque nunca estive em São Paulo, que deve ser muito impressionante.
O Brasil é um país que me levanta um pouco o espírito. Uma vez conversei com Manuel Puig, o escritor argentino que viveu tanto tempo no Rio de Janeiro, e ele me disse: "No Rio tenho a cada manhã a sensação de que, simplesmente colocando a cabeça na rua, encontro ali um ambiente, uma cor, um calor quer me faz sentir que a vida vale a pena ser vivida".
Cada vez que estive no Brasil senti exatamente isso. Vocês podem ter todo tipo de problemas, alguns terríveis, mas há algo no país que é muito estimulante, uma grande beleza que não é só apenas natural, mas também das pessoas, uma música. Há algo que é muito vital, explosivo.
Talvez porque venho de um país andino, e os países andinos são tristes. Na costa peruana a presença negra atenua um pouco isso, trazendo um toque de sensualidade e alegria. Mas a tradição andina é de gente triste, grave, austera. Há ali uma coisa muito profunda e, fundamentalmente, triste.

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