São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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A anarquia errante de Stevenson

CLAUDIO MAGRIS
ESPECIAL PARA O CORRIERE DELLA SERA

Num poema, "O Guarda do Farol", Robert Louis Stevenson diz encontrar-se dentro de uma luz por cima do mar escuro. A profissão do pai, de construtor de faróis, era tradicional na família do escritor, que a celebrou. A ela deve ele, quem sabe em parte, o amor pelo mar, as costas e as paisagens remotas e solitárias.
O farol –com seu ímpeto ousado para o alto, sua clareza e sua altivez– poderia ser um emblema ideal de sua arte, que se dirige às próprias trevas com luminosa alegria e envolve tempestades, aventuras, acontecimentos tumultuosos e emaranhados numa arejada leveza em que, muitas vezes, mesmo o horror e a morte têm o peso de uma pluma e a graça de um jogo.
Stevenson mergulhou naquele mar escuro, dissimulando a aflição de quem penetra na obscuridade e na maldade da vida atrás do jeito adolescente do rapaz que se atira na água desafiando as vagas, com alegria e coragem. A viagem pelo mar afora, tão presente em sua obra e em sua vida, reúne esses dois aspectos: é uma experiência de alegria, uma expansão da alma e dos sentidos, um intenso prazer físico, uma entrega ao encanto da mutável e fascinante superfície do mundo, uma descoberta de novas terras, gentes, cores, seduções e, ao mesmo tempo, é um debruçar-se sobre o abismo desconhecido e sem fundo, um aproximar-se do naufrágio interior e material.
A vida do escritor –que em suas cartas de Vailima, sua última e amada morada em Samoa, ele mesmo define como um conto "melhor do que um poema"– é uma serenidade sempre arrancada às dificuldades e aos sofrimentos. Inclusive do ponto de vista físico ela tem algo de prodigioso, se parece com o incansável desejo de um menino que, mesmo com febre alta, continua correndo entusiasmado à conquista do mundo.
Stevenson foi franzino desde a infância e sofreu a vida inteira de um tipo de tuberculose que o submeteu, muitas vezes, a crises desgastantes. Sua vitalidade, porém, era inesgotável. Nunca permitiu que a doença o abatesse, mas viveu com elas em todas as circunstâncias, desde a época da boêmia universitária e da revolta contra a tradição religiosa familiar, até as viagens à Alemanha, França, América e aos Mares do Sul.
A vida e a obra de Stevenson são uma síntese feliz de ordem e de desordem. A irregularidade e a liberdade anárquica errante, tal como a dos degredados e fugitivos que chegam às ilhas remotas ou às tavernas de seus relatos, são a lei de sua existência, que não poderia deixar-se enquadrar dentro da prosa da realidade burguesa. Sua vida nômade e à solta, revela, porém, uma profunda ordem interior que se parece com a espontânea e ativa simplicidade de uma família harmoniosa, como a que ele mesmo fundou com sua mulher Fanny e seu enteado Lloyd.
Stevenson navega por mares longínquos e ilhas que desaparecem como miragens no horizonte, mas sua jornada, nessas vadiagens expostas a tempestades e encontros perigosos, desenrola-se numa sucessão tranquila de gestos e atividades que têm todo o fascínio da normalidade e da rotina de uma família feliz. O cantor de piratas e de bucaneiros, o narrador de sombrias e insondáveis cisões da personalidade como a do doutor Jekyll é também, graças a seu profundo amor pelas coisas, pai cuidadoso para com os afazeres da casa, do jardim, do bosque e daquela infinidade de coisas que constituem o ritmo cotidiano.
Em Samoa, Stevenson não procura, como outros grandes fugitivos da Europa, o esquecimento da civilização e o arrebatamento da vida primitiva; ele insere-se na realidade local e permanece em contato com amigos e escritores europeus e americanos, aprende a língua nativa e ajuda os habitantes da ilha contra os maus tratos a que são submetidos; não existe contraste algum entre o escritor de grande sucesso no ocidente e o "Tusitala" –o narrador de histórias, como o chamam os nativos.
Stevenson não ama o grande romance social do século 19, que relata e aceita a prosa da realidade, o triunfo de uma ordem impessoal cujas leis são invisíveis para os homens, mas celebra o "romance", a narrativa fantástica e épica onde ainda há lugar para a poesia do coração e para a liberdade. Diante do grande modelo do romance do século 19, Stevenson se põe ao mesmo tempo como epígono e continuador. Por um lado aparece como um narrador do século 18, ingenuamente convencido, como os garotos de seus livros de aventuras, de que o mundo está ainda à disposição da energia individual. Por outro lado, como aliás também muitos autores deste século que nos parecem hoje tão próximos, ele é um escritor de arabescos, consciente de que a imagem totalizante e compacta do mundo e da história, retratada no grande romance realístico-social, quebrou-se e que, tão somente em algumas lascas e fragmentos, quase despojos deixados na praia por um naufrágio, brilha a imagem daquela totalidade perdida.
Stevenson também escreveu romances históricos, desde "Flecha Negra" até "O Menino Raptado", mas a história, para ele, é um cenário para empreendimentos aventurosos, é uma série de feitos como os dos antigos cavaleiros. Ao aproximar-se das ilhas dos mares do Sul, ele diz ter a sensação de quem sai das sombras do império romano, de suas leis e de suas interdições. Mas, mesmo antes de estabelecer-se nos mares do sul, Stevenson havia, no fundo, permanecido alheio à grande tradição político-estatal que, desde o império romano até os grandes Estados unitários, da Revolução Francesa ao código de Napoleão, constitui a estrutura da civilização européia.
Entre os clãs das Ilhas Marquesas ele reencontra os de sua amada Escócia, representados nos seus romances: um mundo em que o hábito vale mais que a norma, a palavra dada e os laços de sangue, mais do que a lei escrita, a revolta do indivíduo, pronto a pagar com sua espada, mais do que os deveres perante o Estado.
Stevenson foi acertadamente definido "um Heine escocês", e isso não somente por conta da coexistência análoga do amor pelo passado fantástico e pela ironia, que lembra a de Ariosto, que justamente o dissolve pela consciência que tem de sua irrealidade. Stevenson descortina e ama em sua Escócia natal o que Heine descobre a ama na velha Alemanha, ou seja a variedade poética e colorida de um mundo pré-moderno, feudal, relutante à uniformidade e ao nivelamento impostos pela modernidade, que aliás, ambos os escritores, alheios que são a nostalgias regressivas e reacionárias, não recusam, assim como não recusam o sentimento liberal e democrático.
Essa consciência da diversidade do mundo, contudo, permite a Stevenson fazer justiça poética às figuras e aos valores irredutíveis à civilização moderna e destinados a desaparecer, como os piratas da imortal "Ilha do Tesouro".
O mar escuro não engoliu a luz do farol, embora muitas vezes pareça prestes a fazê-lo. Stevenson é o autor de "O Estranho Caso do Doutor Jekyll e de Mister Hyde", a obra prima em que o angustiante peso do mal e o frescor da narrativa se equilibram perfeitamente, de "Markheim", de "Olalla" e de tantos outros contos onde as trevas estão de atalaia. Tusilala, que sabe cativar ouvintes e leitores, e têm um talento especial para a felicidade, é perito nas lacerações da mente e do coração e conhece a dimensão abismal e turva da existência.
Na verdade, é mais o mal do que o bem que atrai Stevenson, embora ele saiba quão obtuso e opaco é o mal e quanto a graça de Uma, que sai do mar em seu conto "A Praia de Falesa", e a sincera lealdade de Jim, na "Ilha do Tesouro", sejam mais poéticas e interessantes que o mal, que tem a potência mas também a esqualidez da doença.
Em "O Senhor de Ballantrae", ele representa com enregelante força poética o lento triunfo do mal sobre o bem, a malvadeza de James que corrompe a bondade de Henry, até quase apagá-la numa espécie de idiotia, numa decadência psicofísica em que a ferida da nobre alma acaba tornando-se repulsiva lesão da mente e do corpo.
Mestre de fantasia e de técnica literária, Stevenson às vezes chega a pecar por excesso, deixa-se arrastar por seu próprio talento e versatilidade e escreve páginas distantes das suas obras primas. Mas a leveza mozartiana de seus grandes livros faz com que ele transforme a realidade num relato arejado, trate-se de histórias inventadas ou fiéis à realidade, como em "Nos Mares do Sul".
Nos mares do Sul, onde nasce o livro homônimo, Stevenson torna-se "Tusitala", o narrador de histórias, amigo e irmão dos indígenas. Naquelas ilhas existe a indizível felicidade do mar, mas também uma indizível melancolia. Aquelas páginas abrem-se sobre um imenso mar meridional, sobre uma extrema lonjura a poente em que, mesmo na hora mais luminosa, adverte-se como que o descer de uma grande noite. Muitos habitantes daqueles paraísos não passam de lotófagos que esperam a morte, numa solidão ilimitada como o oceano.
Sobre aquela beleza pesa um invencível torpor, além da melancolia própria de toda beleza absoluta, que promete mais do que pode dar. Àquelas ilhas se aporta, mas para partir em seguida: "Todos embora", diz tristemente o rei de uma delas, e a cada partida o mar fecha-se sobre o breve encontro tal como sobre um naufrágio.
Stevenson pára em Vailima e fixa-se naquela ilha, trabalhando nos livros e nos consertos da casa, permanecendo em contato estrito com os amigos da Europa e interessando-se pelo indígena que lhe diz que Cook não pode ter realmente existido, visto que a Bíblia não fala nele. Vailima, onde ele morre, é um lugar de vida, mas os encantadores mares do Sul, por onde navegou, são um mar de Calipso, do olvido e da morte.
Mesmo assim, é numa dessas ilhas perdidas na distância, em Apemama, que Stevenson encontra, no rei Tembinok, não apenas um tirano ambíguo, mas também um colega de literatura. O rei, ao contar-lhe de alguns versos que havia escrito, responde a Stevenson que lhe pergunta do que se tratava: "Apaixonados e árvores e o mar. Não tudo como verdade, tudo como mentira".
Tradução de AURORA F. BERNARDINI

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