São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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'Ideologia cega os escritores'

No trecho a seguir, Vargas Llosa –que foi de esquerda na juventude, mas tornou-se liberal e afastou-se do marxismo– fala das relações entre escritores e a política.
Folha - Desde os anos 70 o sr. se afastou do marxismo e se tornou um ferrenho adversário de Cuba, ao contrário de escritores importantes como García Márquez e Julio Cortázar, que permaneceram de esquerda e a favor de Fidel. No livro, o sr. se refere a Cortázar com carinho, a despeito disso...
Llosa - Claro, tínhamos grandes diferenças, mas eu procuro não identificar amizade pessoal e preferências políticas.
Folha - E como o sr. vê a obra desses dois escritores hoje?
Llosa - Bem, eu tenho uma grande admiração por ambos. Escrevi até um livro enorme sobre García Márquez nos anos 70. Tenho-lhes muitíssima admiração, e precisamente porque os vejo como escritores tão importantes é que lamento mais que defendam opções que para mim são incompatíveis com a liberdade de criação, sem a qual García Márquez e Cortázar não teriam podido escrever o que escreveram.
Se eles tivessem vivido sob um regime como o de Fidel Castro, ou o da Coréia do Norte, o mais provável é que não teriam escrito as obras que escreveram, que requerem uma disponibilidade de espírito, uma liberdade de imaginação que é incompatível com um regime totalitário. Ou então teriam que arriscar-se à dissidência, ao exílio, aos campos de concentração.
Mas já sabemos que a alta inteligência e a alta cultura não estão protegidas da cegueira política. George Steiner, no formidável ensaio "Linguagem e Silêncio", diz: "A mais terrível comprovação de nosso tempo é que as humanidades não humanizam." Vimos isso no caso da URSS. As mais altas inteligências, os maiores poetas –Paul Éluard, Aragon, Neruda–, as grandes vozes líricas cantando poemas a Stálin.
Sartre, que se supunha a inteligência mais luminosa deste século, terminou seus dias fazendo o elogio do maoísmo, quando entre 20 e 40 milhões de chineses eram sacrificados à loucura fanática da Revolução Cultural.
Por isso, não surpreende que Cortázar e García Márquez tenham apoiado Fidel Castro, Cuba, o sandinismo...
Folha - A imprensa fez muito alarde quando o sr. brigou com García Márquez, há 15 anos. Como foi esse desentendimento?
Llosa - Foi um desentendimento pessoal, não político. Prefiro não comentá-lo.
Folha - Quais são suas relações com ele hoje?
Llosa - Não o vejo há muitos anos. Leio-o, mas não o vejo.
Folha - Outro gigante da literatura latino-americana, Borges, incomodava ao sr. pelo motivo oposto, por fazer uma literatura distanciada da experiência pessoal, da vida concreta.
Llosa - Sim, porque eu era sartreano quando jovem. Borges era então um amor inconfessável (risos). Eu não podia admitir que gostava dele, então o lia em segredo, como alguém que peca (risos).
Hoje, não. Exibo minha admiração com todo despudor. Creio que Borges é, sem nenhuma dúvida, o maior escritor da língua espanhola neste século, e um dos grandes criadores de nosso tempo –por sua originalidade, por sua sutileza, por sua universalidade. Ainda que o gênero fantástico esteja muito distante daquilo que eu faço.
Mas cada vez que o leio –e algumas vezes tive que ensiná-lo–, sinto um verdadeiro deslumbramento por Borges. Me parece um dos mundos mais ricos e pessoais que a literatura pode nos oferecer.
Folha - Em seu livro o sr. diz que mesmo no auge da campanha, no próprio dia da eleição, o sr. não deixava de ler poemas de Góngora, como um refúgio de pureza contra a mesquinharia da política.
Llosa - Sabe, era realmente como um prêmio, o momento, o momentinho em que eu podia concentrar-me num poema de Góngora.
Toda poesia é um mundo à parte, mas a de Góngora o é de um modo absoluto, entre outras coisas pela extremada complexidade de sua linguagem. Ela exige um grande esforço intelectual, uma concentração que automaticamente isola quem entra nela, separa-o da realidade. E é uma poesia deslumbrante, por sua riqueza, pelas alusões, pelas referências, pela musicalidade, pela potência verbal. Realmente é como uma hipnose, um feitiço. Para mim, era uma recompensa estar ali com Góngora naqueles momentos.
Folha - Alberto Moravia dizia que a arte e a política são incompatíveis porque, enquanto a primeira busca o absoluto, a segunda é o reino do contingente, do compromisso, da concessão. O sr. concorda com isso?
Llosa - Sim, estou de acordo, mas ao mesmo tempo tampouco creio que seja bom que a política se converta num monopólio de profissionais da política. Acho que isso é o mais perigoso para a democracia.
Folha - Paradoxalmente, o próprio Moravia se envolveu com política.
Llosa - Claro, e não se pode dizer que foi muito lúcido, porque apoiou o Partido Comunista. É outro caso de bom escritor que foi, politicamente falando, um cego.
Cito um caso que mostra como não só um escritor, mas toda uma classe intelectual pode cegar-se ideologicamente. Não sei se você gosta de "O Leopardo", de Lampedusa. Para mim é uma obra-prima, um dos grandes romances que foram escritos em nosso tempo.
Bem, você sabia que essa obra foi rejeitada por sete editoras? A primeira editora que o recusou foi aquela que era a mais prestigiosa na época, Einaudì. E o recusou porque quem escreveu um informe sobre ele foi Elio Vittorini –um escritor de enorme prestígio e influência, o equivalente italiano de Sartre, uma espécie de "maitre à penser" dos jovens.
Elio Vittorini disse à editora que não o publicasse porque era um romance que negava o movimento da história. É uma coisa realmente interessante como o preconceito ideológico pode chegar a cegar a inteligência totalmente. O próprio Moravia, aliás, foi um dos que rechaçaram Lampedusa.

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