São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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O sonhador pragmático

JOSÉ GERALDO COUTO

Vargas Llosa fala de sua formação literária e aventuras políticas
Acabar com a desigualdade é uma meta impossível e até perigosa
Conheci FHC quando ainda não éramos candidatos a cargo algum
Folha - No diagnóstico que faz do Peru em "Peixe na Água", o sr. atribui a miséria e o atraso do país à tradição de supremacia do Estado, com sua corrupção e seu clientelismo. Mas parte dessa responsabilidade não cabe também às elites econômicas do país, que, assim como as do Brasil, sempre praticaram um modo predatório de exploração dos recursos naturais e do trabalho?
Mario Vargas Llosa - Sim, claro, mas não se deve responsabilizar os empresários por isso. Os empresários não fixam as regras do jogo. Elas são fixadas pelos governos. Se um governo fixa um sistema econômico no qual quem determina o êxito ou o fracasso não é o público consumidor, mas o próprio governo, que concede monopólios e privilégios a uns, prejudicando outros, então é o sistema que corrompe o empresário.
Se o governo não é suficientemente lúcido para impor regras de jogo equitativas, transparentes, mas sim regras complicadas, absurdas, burocráticas, ele assim dá ao funcionário um poder decisivo no êxito ou no fracasso. A fonte da corrupção está aí.
O empresário, em vez de tentar conquistar o consumidor, vai tentar conquistar o funcionário, o ministro ou o presidente, corrompendo-o. Se um governante estabelece como regra do jogo que o subornem, o empresário vai suborná-lo.
Há uma famosa alegoria de Adam Smith: "O empresário privado é o motor extraordinário do desenvolvimento, com a condição de que o coloquem nos trilhos adequados." E isso é o que devem fazer os governos. Claro que não depende só deles. Há que existir um marco cultural: uma Justiça independente, tribunais que realmente defendam a lei. Porque, se você pode comprar um juiz, como pode funcionar direito um mercado?.
Folha - A crítica mais comum ao liberalismo radical que o sr. propõe é a de que, numa situação de "laissez faire" absoluto, tenderia a aumentar a distância entre ricos e pobres, que é vertiginosa em nossos países.
Llosa - Bem, se se quer que não haja diferenças, essa é uma opção. Mas é uma opção que só se pode realizar acabando com a liberdade, impondo um poder central absolutamente controlador de toda a vida econômica e uma política de redistribui'ção da riqueza que até agora, em todos os casos, trouxe pobreza generalizada, perda absoluta da liberdade e, em última instância, a criação também de minorias privilegiadas, as "nomenklaturas".
Folha - Não existiria um modo de diminuir as diferenças sociais sem recorrer ao totalitarismo?
Llosa - Nas sociedades que eu mais admiro, a margem entre os que têm mais e os que têm menos é a mais curta –o que não significa que não existam distâncias, e distâncias grandes. Creio que isso não se pode impedir.
Num país comunista, em teoria se cria uma sociedade igualitária. Mas numa sociedade como a de Stálin, como a de Mao, como a de Cuba hoje em dia, uma pessoa como Fidel Castro e um grupo relativamente pequeno têm umas condições que são estratosféricas em comparação com a dos pobres que se atiram ao mar para fugir.
Então, aí a igualdade resultou num mito, e o preço que se pagou por ela foi uma miséria generalizada, como a que deixou o socialismo na Rússia e no Leste da Europa. Acho que é inevitável que haja diferenças de renda e que a única maneira de atacar esse problema é fazer com que a diferença de renda resulte exclusivamente do esforço e do talento, não do abuso, do atropelo, do privilégio.
Isso é justamente o que faz o mercado, não? Agora, nessa sociedade regulada fundamentalmente pelo mercado livre, há setores que não podem competir e que ficam marginalizados porque são fracos –os velhos, os doentes. Não existe nenhum liberal que não reconheça isso e nenhum liberal que não aceite que a sociedade tem uma responsabilidade com relação a esses setores.
Quais são as sociedades que criaram os serviços públicos mais avançados? São as sociedades liberais, não as totalitárias. São as sociedades como a Inglaterra, como a França... Há um risco nisso, porque, como se está vendo nessas sociedades, o Estado "benefactor", quando começa a assumir tantas responsabilidades, num momento dado se converte numa espécie de monstro que começa a esmagar a iniciativa e entravar o processo de criação de riquezas. Tem que cobrar impostos muito altos –e os impostos altos afinal desincentivam a produção da riqueza.
Então, o ideal é que uma sociedade, ao mesmo tempo que cria um sistema em que há muitos estímulos para produzir riquezas, vá transferindo também à sociedade civil a responsabilidade dos serviços: educação, saúde... Há equilíbrio, mas o equilíbrio não deve levar nunca a que essa responsabilidade de redistribuir vá tão longe a ponto de destruir o princípio fundamental, que é a criação da riqueza. Sem criação de riqueza não há desenvolvimento, não há justiça.
O que acontece é que estamos formados por uma tradição, que por uma parte é cristã, por outra parte é socialista, que cria em nós uma resistência terrível a aceitar que uma sociedade pode estar composta por gente que tem mais e gente que tem menos riqueza. Isso nos produz uma repugnância íntima. Aquela história de que é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha que um rico entrar no reino do céu. Nós carregamos isso incrustado aqui dentro –a idéia de que o rico é um pecador, é mau.
É claro que essa é uma idéia fundamentalmente reacionária, antiprogressista. Se não fosse pelos empresários, por sua iniciativa, sua audácia, sua busca de novas fontes de benefício, estaríamos ainda nas sociedades mágicas, primitivas. O que temos que criar é um sistema em que o empresário tenha êxito servindo a todos.
Folha - O presidente eleito Fernando Henrique Cardoso foi muito criticado por ter-se aliado a setores da oligarquia tradicional, o que seria um entrave a seu projeto modernizador. O sr. sofreu o mesmo tipo de crítica. Em seu livro, admite que, se vencesse, seu governo teria dificuldade de administrar as diferenças entre os aliados.
Llosa - As razões no meu caso eram muito simples. Eu pensava que, para fazer aquelas reformas tão radicais, era muito importante ter uma base muito ampla, e por isso é que trabalhei nessa coalizão. Para mim, o fundamental era que houvesse um programa de reformas que fosse aceito por meus aliados conservadores, para que ele tivesse essa base popular.
Acho que a aliança me prejudicou. Muita gente me identificou mais àquelas velhas caras que ao programa novo. O que eu pensava era que, sendo eleito, eu teria, para negociar com meus aliados, um mandato popular sustentado num programa. Por isso durante toda a campanha eu fui tão explícito, explicando o programa, e isso inclusive também me prejudicou, aparentemente. Porque fiz questão de ser muito claro, não enganando ninguém sobre as reformas.
Folha - O sr. prevê problemas dessa ordem para FHC?
Llosa - Espero que não. Creio que as alianças sempre são difíceis. Sempre há tensões. Mas ele tem mostrado muita habilidade política para mover-se nesse mundo tão espinhoso. Creio que há, pela segunda vez no Brasil, uma oportunidade de que se façam reformas de modernização dentro da legalidade, e seria terrível desperdiçá-la. Confesso que tinha muito medo de que Lula vencesse, porque as idéias de Lula, tais como as escutei no ano passado num simpósio na Universidade de Princeton, me alarmaram muitíssimo.
Folha - O sr. chegou a se encontrar com Lula?
Llosa - Muito brevemente, só um cumprimento. Mas me pareceu, por seu discurso, um homem que se movia totalmente dentro do populismo, que tinha uma visão absolutamente anacrônica do que é o caminho do desenvolvimento, da modernização. Por isso me alegrei com a vitória de Cardoso.
Folha - Com ele o sr. nunca esteve?
Llosa - Estive sim, há vários anos, em Londres, quando estava por aqui, como embaixador, um amigo comum, e um grande liberal brasileiro, José Guilherme Merquior, uma pessoa enormemente culta e talentosa. Ele me apresentou a Cardoso e ali conversamos bastante –e isso foi antes que qualquer um de nós sequer suspeitasse que concorreria à presidência. Antes disso, eu o havia lido muito, como um dos pensadores da teoria da dependência.
Continua à pág. 6-5

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