São Paulo, quarta-feira, 30 de novembro de 1994
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Inéditos mostram prazer em humilhar burguesia

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Os dois contos inéditos de Rubem Fonseca foram escritos nos últimos seis meses e honram sua fama de mestre da narrativa concisa. O primeiro desde o início se intitulou "O Anão". O segundo, "Placebo", por uns tempos se chamou "Feto". O primeiro é, acima de tudo, pateticamente divertido; o segundo, implacavelmente irônico e cruel. Em ambos, como de hábito, gentes de distintas castas se imiscuem por obra de demônios que parecem se deleitar com a humilhação da alta burguesia carioca. Ao fundo, na maior parte do tempo, as ruas mais sórdidas do centro do Rio.
O protagonista de "O Anão" é um bancário desempregado que mora num sobrado do Catumbi e se envolve numa trama de certo modo parecida com a de "Sinfonia de Paris". Seu coração e seu inacreditável priapismo (pegar em dinheiro o dia inteiro multiplica o tesão, teoriza o bancário) se dividem entre uma enfermeira suburbana, de cabelos oxigenados, chamada Sabrina –o lado Leslie Caron do triângulo–, e uma grã-fina adúltera, talhada para Nina Fuck, perdão, Foch. Na trilha sonora, em vez de Gershwin, Tim Maia. No desfecho, dois também dançam –só que no mau sentido. Ágil, perverso e, por vezes, hilariante, "O Anão" lembra Hemingway e uma hipotética desilusão de John Huston inesperadamente entregue à direção (e à fereza) de Hitchcock.
O homem mata para tudo, sobretudo para poder viver mais. Eis a moral da história de "Placebo", na qual um empresário atormentado por uma misteriosa doença hereditária se entrega ao curandeirismo de um Chico Xavier cujo Fritz se chama Wolfgang Keitel e é também doutor. O miraculoso elixir do dr. Wolf é feito de uma matéria-prima repugnante: feto de sangue negro, com mais de dois e menos de três meses. Como conseguir tal coisa, pergunta o empresário, se mulheres negras em geral não têm dinheiro para frequentar as clínicas de aborto conhecidas (e frequentadas) pelas suas amiguinhas?
Já vimos esses personagens antes, presos a outras coleiras, ardendo nas mesmas labaredas infernais e saindo pelo intestino grosso da urbe sombria e desumana. Rubem Fonseca, contudo, não se repete, se renova.
(SA)

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