São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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O Brasil e a instabilidade estrutural

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Déficit comercial e transferência patrimonial, as novas novas regras não-explícitas do chamado "Consenso de Washington" para o ajuste dos países periféricos, estão sendo finalmente postas em prática no Brasil.
Com quatro a cinco anos de atraso em relação ao México e Argentina, o Brasil está se esmerando na aplicação das regras, perigando vir a ocupar o primeiro lugar entre "os bem-comportados" do subcontinente americano.
As regras anteriores (que tiveram vigência na década de 80) eram simples e conhecidas pelo nome de três D.
O primeiro D era para a desvalorização (cambial) e tinha por objetivo a criação de um superávit comercial capaz de servir a dívida externa (pelo menos em parte). Todos os países fizeram desse modo o seu "ajuste externo", sendo o do Brasil o que teve mais êxito, e de passagem transferiram para o exterior mais de duas centenas de bilhões de dólares.
O segundo D era para a desregulação dos mercados, com abertura comercial e financeira das economias. O primeiro país a adotar essas medidas (antes mesmo de virarem "regras globais") foi o Chile, durante o regime Pinochet, com os resultados conhecidos sobre a desestruturação dos bancos e da indústria.
O segundo foi a Argentina, que começou com Martin de Hoz e terminou com Cavallo, depois de muitas idas e vindas que provocaram um forte processo de desindustrialização e várias explosões hiperinflacionárias.
O terceiro foi o México, cujo processo de abertura e desregulação se iniciou com o governo de La Madrid e só terminou no governo seguinte, isto é, levou mais de seis anos.
O nosso começou com o governo Collor e está terminando agora, com a atual política cambial.
Todos os processos de abertura comercial e desregulação financeira foram acompanhados no começo por sobrevalorização cambial, que durante a década de 80 teve de ser combatida periodicamente com desvalorizações da moeda. Estas coincidiam com movimentos especulativos bruscos, fuga de capitais e explosões inflacionárias.
Aí se aplicavam com rigor máximo as recomendações implícitas no terceiro D, que significava política de deflação permanente, centrada, é claro, no ajuste fiscal e monetário no balanço de pagamentos.
Como os desequilíbrios do balanço de pagamento ocorriam nas duas contas (comercial e de capitais), as políticas monetária e cambial eram impotentes para encontrar uma situação de equilíbrio.
Só restava então o ajuste fiscal permanente, igualmente incapaz de chegar ao equilíbrio, uma vez que a conta de juros altos (internos e externos) rolava em bola-de-neve e fazia explodir periodicamente o orçamento fiscal programado com "austeridade".
A situação da conta de capitais mudou radicalmente a partir de 1990, dada a queda da taxa de juros americana e a busca frenética de aplicações financeiras internacionais nos chamados "mercados emergentes".
Os recentes sucessos argentino e mexicano no combate à inflação devem-se à utilização de uma "âncora cambial" em condições de economia já abertas, desreguladas e com ampla oferta de capital financeiro, internacional de curto prazo.
Isso permite manter os preços estáveis pelo tempo que durar a "absorção externa" de recursos que, por sua vez, exige um déficit no balanço de transações correntes equivalente à entrada de capitais.
Como subproduto da abertura financeira desregulada, a entrada de capitais financeiros especulativos ajuda a fechar o balanço de pagamentos, repetindo um processo de endividamento de curto prazo mais rápido do que o ocorrido entre 1979 e 1982.
Ele é, no entanto, de natureza distinta. Desta vez, a "bolha" especulativa internacional está mais ligada ao mercado de câmbio do que ao mercado de commodities (do tipo petrodólares) e opera em condições de desregulação global do mercado de dinheiro e de capitais.
Isso significa que o dinheiro pode fugir a qualquer sinal negativo do mercado internacional em relação às áreas mais endividadas a curto prazo, como por exemplo (novamente) o México, na área latino-americana.
A dívida externa mexicana multiplicou-se de forma espetacular nos últimos anos, acompanhando o movimento de integração com o mercado de capitais norte-americano. O déficit em transações correntes, que tinha sido zerado pela negociação da dívida externa (velha) em 1988, foi superior a US$ 25 bilhões em 1994.
Além disso, o miniciclo de crescimento correspondente ao período de estabilização, com investimento direto estrangeiro nas indústrias de exportação fronteiriças, parece ter terminado.
Juros elevados, câmbio sobrevalorizado e déficits comerciais estruturais são condições ótimas para ondas de privatização, isto é, transferências patrimoniais baratas do setor público para o setor privado.
A questão central, porém, é que essas transferências patrimoniais não se destinam a zerar a dívida velha, senão a servir de lastro para um novo endividamento (desta vez de curto prazo), correspondente à entrada de capitais especulativos, em geral aplicados metade em Bolsa e metade em títulos da dívida pública do Tesouro.
O "povo dos dólares" agradece duplamente, tanto do ponto de vista dos bons negócios, quanto do ponto de vista de um maior equilíbrio comercial dos Estados Unidos.
Esta grande potência, como se sabe, tem problemas de déficit estrutural com o Japão (com qualquer taxa de câmbio) há mais de uma década. Esta situação tem contribuído para enfraquecer a posição internacional do dólar nos mercados de câmbio.
A contribuição que se espera da América Latina, considerada território do dólar (pelo menos em termos financeiros e geopolíticos), é fazer um movimento contrário ao da década de 80.
Uma vez regularizada a situação da "dívida velha", cabe agora produzir déficits crescentes com os EUA, de modo que o superávit americano seja suficiente para cobrir o déficit com o seu principal credor da Ásia.
O Brasil tem, porém, sérias dificuldades de cumprir o papel que lhe foi designado no novo "Consenso de Washington", a menos que seja criada uma área de comércio preferencial ou de "livre comércio" com os EUA, já que a sua abertura comercial não pode discriminar as exportações oriundas da Ásia e da Europa. Diga-se de passagem que isto vale também para a Argentina e o Mercosul.
Mas essa dificuldade pode ser obviada se os segmentos mais importantes do investimento estrangeiro europeu (automobilístico) e japonês (minério, siderurgia e naval) forem sendo desestruturados e perderem competitividade.
Nesse caso, seria mais fácil trocar de mãos a propriedade privada e estatal (sobretudo Vale do Rio Doce e telecomunicações), tirar os japoneses da jogada e dar para os nossos irmãos do norte algumas posições vantajosas no mercado de bens e de riqueza material, correspondentes à posição financeira que já detêm aqui.
O ajuste proposto pelo "Consenso", portanto, está longe de terminar. Continua agora com dois S –de supervalorização e sucateamento do patrimônio público– e um novo D –deslocamento dos concorrentes.
O que a economia brasileira vai experimentar nos próximos anos não é um processo de estabilidade, mas sim de desajuste e instabilidade estrutural. A expressão usual entre os economistas nas décadas de 70 e 80: "O rabo balança o cachorro" deve ser substituída por "O rabo vai engolir o cachorro".
Vale dizer: as condições externas já não são apenas "determinantes em última instância", como na economia dependente; agora são determinantes em primeira instância. Ou seja, o capitalismo brasileiro associado está passando rapidamente a capitalismo subordinado. A metrópole manda e o satélite obedece.
Só que as coisas não são tão simples assim e a grande metrópole local, São Paulo, pode não ficar satisfeita com os resultados do novo ajuste cambial, patrimonial e fiscal.
Mas isso nos levaria a um outro tema sobre o lado político da instabilidade estrutural. Desta vez, o coração do capitalismo brasileiro, tendo-se tornado também o coração político da nação (ao contrário da década de 30), está submetido a uma perigosa esquizofrenia: estar no poder e ser contra ele.
Como a história não se repete, nem mesmo como farsa, não se espera nenhum 1932, apenas um longo processo de conflitos e arbitragens que tornará ainda mais sem transparência a natureza do poder no Brasil.

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