São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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CONSENSO DE BACHARÉIS

FERNANDO DE BARROS E SILVA
DA REPORTAGEM LOCAL

Vem aí o "consenso dos bacharéis". É com essa expressão que o historiador Luiz Felipe de Alencastro, 48, esboça a imagem do que espera –ou não– do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Estaria em curso uma unanimidade em torno do presidente eleito liderada por uma nata de intelectuais que, desde a campanha eleitoral, vem abdicando do dever da crítica para avalizar de olhos vendados os passos de FHC.
"É um indício muito ruim do que vem pela frente", diz Alencastro, referindo-se à omissão dos mesmos "bacharéis" que até o ano passado citavam o PFL em artigos de jornal como sinônimo de fisiologia e berço clientelista de uma elite truculenta.
"Querem nos fazer crer que Fernando Henrique já resolveu todas as contradições de suas alianças e já tem a chave para todos os problemas do país em função do seu currículo?", pergunta o historiador.
Por isso, diz ele, Fernando Henrique desponta hoje como "o único intelectual" autêntico e autônomo de um governo que promete estar repleto deles.
Alencastro, que acumula as funções de pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e professor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), vai acompanhar os primeiros passos da carruagem tucana do lado de lá do Atlântico.
Ele viaja para Paris ainda este mês, onde pretende passar todo o ano de 1995 para concluir um grande estudo em três volumes sobre a história do Brasil.
O primeiro volume, intitulado "O Trato dos Viventes", compreende o período que vai de 1500 a 1700. Deve ser lançado no início do ano que vem pela Companhia das Letras. Trata-se da sua tese de livre-docência, defendida há duas semanas na Unicamp, da qual o Mais! publica hoje um trecho com exclusividade (leia à pág. 6-8).
Na banca estavam os economistas Celso Furtado e João Manuel Cardoso de Mello e os historiadores Fernando Novais, Francisco Iglésias e Francisco Falcon.
No conjunto, o trabalho pretende dar conta de mais de 400 anos de história, chegando até 1930.
Até essa data, diz Alencastro, o pulmão da economia brasileira funcionou fora do país. A reprodução da mão-de-obra local, que dependeu durante séculos do tráfico negreiro, após sua extinção teve continuidade com a imigração compulsória de colonos europeus, financiada em grande medida pelo Estado brasileiro.
Ao adotar a reprodução da mão-de-obra como fio condutor da formação capitalista do país, Alencastro reabre um debate entre especialistas que parecia resolvido desde que Fernando Novais escreveu "Brasil e Portugal na Crise do Antigo Sistema Colonial", o último clássico da historiografia paulista, publicado em fins de 70.
Na entrevista que segue, gravada durante três horas numa das salas do Cebrap, Alencastro evitou as filigranas que ora o afastam e ora o aproximam de Novais e seus mestres declarados –Celso Furtado e Caio Prado Jr.
Preferiu antes fazer um balanço –nada alentador– da situação em que se encontra a historiografia local.
Segundo ele, a voga da história das mentalidades foi importada da França de forma atabalhoada, sem que por aqui os profissionais do ramo fizessem o trabalho prévio de estudar minuciosamente as datas e os personagens fundamentais, na melhor tradição escolar e positivista que pauta a formação de qualquer historiador francês. O resultado, diz, foi desastroso.
"No Brasil, as coisas mais óbvias ainda não foram feitas. Não temos, por exemplo, um bom estudo sobre Joaquim Nabuco".
O exemplo não é gratuito. Segundo ele, para além das lições históricas, o autor de "O Abolicionismo" teria muito a dizer sobre o que significa ser hoje intelectual no Brasil. "Pensar o país no meio dessa miséria, tornando agudo o insulto que ela nos joga na cara, é uma coisa que Nabuco enfrentou de frente. Sua indignação deve nos inspirar", diz.
Folha - Os sociólogos, que nos últimos anos andam em baixa, já que a história lhes puxou o tapete, devem voltar a ter alguma relevância, ao menos no Brasil, com a eleição de Fernando Henrique. Como um historiador vê um intelectual sociólogo na Presidência?
Alencastro - Eu, francamente, estou muito preocupado. Pela primeira vez temos um presidente que é um intelectual. Não é um poetastro, como Sarney, nem um administrador provinciano, como Itamar, para não falar da caterva totalitária que veio antes. Do Collor nem preciso falar. Esses presidentes só eram sensíveis a bordoadas da grande imprensa. Só se mexiam, caiam em si e começavam a perceber a desordem que estavam criando quando apanhavam.
Ora, o Fernando Henrique é bem diferente disso. Por isso mesmo seria importante que ele soubesse da existência e da continuidade do espírito crítico em volta dele. Nem falo dos intelectuais que se engajaram do lado de Lula, que são em geral tidos como burros ou autoritários e em função disso não teriam muito para dizer agora, na avaliação dos vitoriosos. O problema é que do lado de Fernando Henrique também há um campo intelectual de democratas e eles ficaram muito omissos até aqui. Ninguém foi aos jornais fazer a crítica do senhor Guilherme Palmeira. Preferiram engolir um sapo daquele tamanho em silêncio. E, quando ele caiu, foi depois de uma rodada de uísque a portas fechadas, com um telefonema do ACM. Não foi em função das críticas dos tucanos, aliás inexistentes. Depois também digeriram sem restrições o senhor Marco Maciel.
Folha - Este seria um aviso de como vai andar a carruagem tucana?
Alencastro - É um indício muito ruim do que vem pela frente. Estou apreensivo, para dizer o mínimo, com esse "consenso dos bacharéis" formado em torno de Fernando Henrique. Já escrevi, agora repito: pelo jeito o Fernando é hoje o único intelectual tucano. Os demais abdicaram desse estatuto ao se colocarem em bloco atrás dele, pouco importando o que ele faz ou deixa de fazer. Há 25 facções de áulicos em torno de Fernando Henrique. Querem nos fazer crer que Fernando Henrique já resolveu todas as contradições de suas alianças e já tem a chave para todos os problemas do país em função do seu currículo? Os tucanos preferirão fazer suas críticas em silêncio, nos corredores das universidades? A única discussão que interessa à democracia é a discussão pública.
Folha - A eleição de FHC não tem, na sua opinião, um caráter renovador, como até alguns petistas admitem?
Alencastro - Será preciso tirar consequências práticas dessa eleição. Houve uma dessensibilização tão grande da sociedade diante da miséria que pode tornar ilusório qualquer sentimento de emergência das reformas. Tem muita gente achando que basta privatizar para dar jeito no país. Acham que basta colocar seguranças armados nas mansões e os filhos em escolas particular para se livrar da miséria. Assim não dá.
Há muitos tipos de burguesias predatórias, mas essa brasileira parece ser suicida. Quando percebe que a situação chegou no limite, resolve destruir o país e se mandar para Miami. Mas até o Mário Amato sabe que eles não seriam bem recebidos por lá. Queiram ou não, o destino deles está aqui. Mesmo a elite mais truculenta, rústica e embrutecida está começando a se dar conta disso. Do contrário, não seria possível a vitória de Fernando Henrique.
Folha - O comportamento da mídia e da imprensa em geral na eleição foi comprometedor?
Alencastro -Salvo exceções, sem dúvida. E não houve um único intelectual tucano que viesse a público para dizer que essa matracagem, essa artilharia em favor do Fernando Henrique é um defeito semi-institucional, uma coisa muito grave.
Folha - Ainda sobre a mídia, como fica a polêmica entre a Rede Globo e o movimento negro, que acusou a novela "Pátria Minha" de açular o preconceito racial? Qual é o limite da liberdade de expressão nesse caso?
Alencastro - Ninguém teria falado nisso se os movimentos negros não tivessem reagido. Não sei se eles se manifestaram da forma mais adequada, mas quem somos nós para pautar um debate sobre tema tão melindroso? Isso surge do jeito que surge. Agora, dizer que a ficção da Globo pode se exprimir livremente e que o movimento negro quis cercear essa liberdade me parece absurdo. A emissora já tem sua censura interna. Quando é que a Globo vai fazer uma novela com um magnata de imprensa tirânico chamado Roberto Marítimo? Ela não põe nenhum bispo em situações ridículas, como faz com pai-de-santo e macumbeiro. Por quê? Porque já tem uma filtragem anterior. Ou querem me dizer que vão fazer uma novela com um sociólogo charlatão que seja professor da USP. Não vão. O negro eles põem do jeito que querem e depois se espantam quando vem a reclamação.
Folha - Mudando de assunto, como anda a historiografia brasileira?
Alencastro - Tenho a impressão de que no Brasil tudo está por fazer. Nós temos um trunfo enorme. Os documentos em língua portuguesa são absolutamente fundamentais para a história mundial nos dois ou três primeiros séculos após o descobrimento. Praticamente todas as fonte da Ásia e África até o século 18 são em língua portuguesa. Só uma parte ínfima disso foi explorado. Quando você escolhe um assunto qualquer por aqui, a possibilidade de trombar com outro é mínima, quase não existe. O campo de pesquisa é enorme. As coisas mais óbvias ainda não foram feitas.
Folha - Isso vale também para a história recente do país?
Alencastro - Claro, claro. Há, por exemplo, várias monografias regionais sobre a passagem do trabalho escravo para o assalariado, no entanto, não existe um grande livro de síntese dessa questão. Esse é um ponto nevrálgico, porque a escravidão no Brasil não é problema exclusivo da população negra, mas diz respeito à formação da classe dominante, à demografia, à ideologia, à idéia do atraso do país etc. Isso foi pensado de forma sistêmica no século 19 e não há hoje um livro que dê conta do assunto. Não temos nem biografias sobre os personagens fundamentais da história do país. Um personagem como Joaquim Nabuco, por exemplo, merece um estudo como o que Roberto Schwarz fez a partir de Machado de Assis.

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