São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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CONSENSO DE BACHARÉIS

Folha - Por que Nabuco?
Alencastro - É fundamental. "O Abolicionismo" é o tipo de história que eu gosto. É um livro que estuda a história política no melhor sentido, na medida em que toma como assunto a história do poder. O que está em jogo não é a história dos políticos, das instituições ou do Parlamento, mas a questão do poder. Além disso, Nabuco ataca de frente o escândalo que é ser intelectual no Brasil, o que é muito contemporâneo.
Pensar o país nessa miséria, do acinte que é a vida hoje nas cidades, tornando agudo o insulto que essa miséria nos joga na cara, é uma coisa que os que viveram no Brasil no fim da escravidão sentiram de forma brutal. A indignação nabuquiana deve nos inspirar.
Folha - Além de Nabuco, quais autores o inspiraram?
Alencastro - Gosto muito da "Formação da Literatura Brasileira", do Antonio Candido, da "Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Jr., e da "Formação Econômica do Barsil", do Celso Furtado, por quem eu tenho especial admiração. É importante que as pessoas saibam que o primeiro ministro do Planejamento do país não virou banqueiro nem foi dar consultoria privada para grã-finos ou gente que quer escapar do imposto de renda. Preferiu voltar a dar aulas.
Folha - Por que essa tradição das grandes obras de compreensão do Brasil se perdeu?
Alencastro - Acho que num certo sentido, um pouco disso se deve a uma interpretação equivocada que se fez no Brasil da "École dos Annales" e do que é chamado "Nova história" francesa. A discussão, na França, se dá num terreno bem balizado, com a retaguarda de uma historiografia bem estabelecida, um ensino de história muito eficaz no secundário e nas universidades e uma história positivista muito bem sedimentada, com datas, personagens etc.
Quando a "École dos Annales" começou a combater isso, já antes da Segunda Guerra, ninguém pensou, como se fez por aqui, que as datas não tinham a menor importância. É um mal-entendido sem tamanho. Nenhum desses grandes historiadores franceses, como o Jacques Le Goff, o Duby e outros, é só especialista em mentalidades. São também especialistas em história econômica e história política. A base deles é essa. Sem levar isso em conta, no Brasil se perdeu a idéia de "última instância".
O historiador estabelece uma equivalência total dos fatores e sua análise se descompromissa inteiramente de arbitrar numa certa hierarquia de fatores. Ninguém sabe mais qual é, afinal, a linha dinâmica daquilo que estuda. Qualquer jornalista sabe isso e o historiador aparentemente perdeu essa noção.
Folha - Parece então que o debate historiográfico brasileiro está encastelado em sua própria irrelevância. Ao mesmo tempo em que perdeu o contato com a tradição não-universitária tem sido incapaz de produzir grandes obras, grandes sínteses.
Alencastro - É mais ou menos isso. Mas também não sou daqueles que acham que a cada cinco anos se deva produzir uma grande síntese da história do Brasil. A situação das revistas especializadas são um bom termômetro para se analisar isso. O essencial do debate hoje em ciências sociais se faz nas revistas. Elas são um parâmetro para se avaliar o dinamismo do debate intelectual em determinado ambiente. No caso brasileiro, as revistas são muito limitadas.
A revista do Cebrap ("Novos Estudos"), que é bem-sucedida, não tira mais de 3.500 exemplares por número. As outras estão muito abaixo disso. Os debates não são canalizados para lugar algum e acabam variando muito ao sabor das influências. Hoje essa influência é basicamente americana. Tudo passa pelo filtro americano.
Folha - É possível exemplificar?
Alencastro - O Foucault, por exemplo, nos é dado pela visão da Califórnia. Ora, nós tivemos o privilégio de ser basicamente os primeiros discípulos do Foucault. Muitas coisas que ele elaborou foram feitas aqui na USP. Agora vendem ele como se fosse um militante gay da Califórnia. Um jovem mais desatento vai acreditar nisso, que ele é um gay da Califórnia e não um francês com a carreira feita de acordo com o melhor debate da academia francesa.

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