São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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FIM DE SÉCULO

ROBERTO SCHWARZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

No começo da década de 60 um crítico observava que no Brasil se faziam filmes que, embora tendo público numeroso e entusiasta, não eram considerados propriamente cinema pelos seus produtores e espectadores. Cinema de verdade era o que nos vinha dos Estados Unidos ou talvez da Europa, muito diferente das nossas chanchadas. Cinema era somente o que não produzíamos, e que valorizávamos de modo aliás um tanto subalterno. É o que o crítico chamava "a situação colonial do cinema brasileiro".
Esta situação tinha prolongamentos também na reflexão, a qual com toda naturalidade tomava como objeto o cinema-arte, quer dizer, o cinema feito fora. Assim, enquanto o crítico americano ou europeu escrevia em diálogo virtual com os diretores dos filmes que comentava, o brasileiro não dispunha desta referência importante. Na ausência dela não lhe restava senão a afirmação das mitologias e manias de um aficionado. Seu verdadeiro interlocutor eram a ignorância do público, a estupidez da censura, o mau gosto dos distribuidores, além da simpatia do grupinho dos adeptos. Tratava-se de um bem-engrenado sistema de alienações, que em palavras do próprio crítico imprimia "a marca cruel do subdesenvolvimento" em todos que se ocupassem do assunto durante algum tempo. Não era uma ironia fácil, pois quem assim se expressava vinha se ocupando de cinema em tempo integral há muitos anos.
O autor de que falamos é Paulo Emilio Salles Gomes, e o escrito em questão foi apresentado como contribuição à Primeira Convenção Nacional de Crítica Cinematográfica em 1960 (1). Expus alguma coisa de seu argumento porque resume com felicidade a situação que o nacionalismo desenvolvimentista queria superar no campo da cultura. Note-se que o divórcio entre aspiração cultural e condições locais é um traço comum e quase se diria lógico da vida em colônias ou ex-colônias. Neste sentido não se tratava de nada novo ou exclusivo ao cinema. Devido à sua componente industrial, entretanto, este último levaria a reformular aquele divórcio em termos atualizados, propícios à intervenção deliberada e política.
Posto como objetivo prático, o desenvolvimento nacional reorganizava o espaço da imaginação e do pensamento crítico em torno de um eixo interno. Cheia de dificuldades, a relação entre as aspirações de modernidade e a experiência efetiva do país se tornava um tópico obrigatório, desmanchando o bovarismo endêmico e convidando a reflexão a tocar terra.
No limite tratava-se de arrancar a população aos enquadramentos semicoloniais em que se encontrava, e de trazê-la, ainda que de forma precária, ao universo da cidadania, do trabalho assalariado e da atividade econômica moderna, industrial sobretudo, contrariando o destino agrário a que o imperialismo –como se dizia– nos forçava (o que aliás naqueles anos 60 deixara de ser verdade). Isto na ótica justificadora e como que "responsável" do projeto nacional. Com menos simpatia e mais acento na irresponsabilidade e na cegueira, pode-se dizer igualmente que os novos tempos desagregavam à distância o velho enquadramento rural, provocando a migração para as cidades, onde os pobres ficavam largados à disposição passavelmente absoluta das novas formas de exploração econômica e de manipulação populista.
Afastada de suas condições antigas, posta em situações novas e mais ou menos urbanas, a cultura tradicional não desapareceria, mas passava a fazer parte de um processo de outra natureza. A sua presença sistemática no ambiente moderno configurava um desajuste extravagante, cheio de dimensões enigmáticas, que expressava e simbolizava em certa medida o caráter pouco ortodoxo do esforço desenvolvimentista. Com a sua parte de simpatia e de tolerância, mas também de absurdo e de primitivismo, esta mescla do tradicional e do moderno se prestava bem a fazer de emblema pitoresco da identidade nacional.
Por outro lado é certo que o ritmo e a sociabilidade tradicionais lançavam por sua vez uma luz crítica sobre as pautas do progresso econômico dito "normal", criando a presunção de que nas condições brasileiras a sociedade moderna seria mais cordial e menos burguesa que noutras partes. Com a distância no tempo e a ampliação da perspectiva, entretanto, esta mesma mescla sofre mais outra viravolta: deixa de funcionar como emblema nacional, para indicar um aspecto comum das industrializações retardatárias, passando a representar um traço característico da cena contemporânea tomada em seu conjunto.
Seja como for, o nacionalismo desenvolvimentista armou um imaginário social novo, que pela primeira vez se refere à nação inteira, e que aspira, também pela primeira vez, a certa consistência interna: um imaginário no qual, sem prejuízo das falácias nacionalistas e populistas, parecia razoável testar a cultura pela prática social e pelo destino dos oprimidos e excluídos. De passagem seja dito que a derrocada posterior das promessas daquele período não invalidou –ao menos não por completo– o sentimento das coisas que se havia formado, reflexo agora meio irreal de uma responsabilidade histórica, cujas derrotas assinalam outros tantos avanços da nova dessolidarização social.
Nascido na conjunção de mercado interno e industrialização, o ciclo desenvolvimentista adquiriu certo alento de epopéia patriótica a partir da construção de Brasília; o seu ponto de chegada seria a sociedade nacional integrada, livre dos estigmas coloniais e equiparada aos países adiantados. É um fato que nas próprias elites existia a convicção de que essa trajetória incluiria momentos de fricção com os interesses norte-americanos. Ocorre entretanto que no início dos anos 60 se foi firmando mais outra convicção, esta explosiva, segundo a qual a firmeza do antiimperialismo dependia de uma modificação na correlação de força entre as classes sociais dentro do próprio país. O nacionalismo só alcançaria os seus objetivos se fosse impulsionado pelo acirramento da luta de classes. Começava a radicalização social que seria cortada em 64 pelo golpe militar.
Noutras palavras, surgia a consciência de que a exploração de classe interna e as grandes desigualdades na ordem internacional se alimentavam reciprocamente e que era necessário enxergar as duas um conjunto. Pouco tempo depois Glauber Rocha formularia a sua "estética da fome", na qual reivindicaria a feiúra e miséria do Terceiro Mundo, mas para lançá-las à cara dos cinéfilos europeus, como parte do mundo deles, ou melhor, como um momento significativo do mundo contemporâneo, e não mais como um exotismo próprio a regiões distantes ou a sociedades atrasadas. Por aqueles mesmos anos foi elaborada a Teoria da Dependência, que estudava o vínculo de estrutura entre a ordem mundial e as distintas situações de subdesenvolvimento. Como se vê, foi um momento forte de tomada de consciência contemporânea, nacional e de classe, que se traduziu por uma notável desprovincianização do pensamento. Não foi por acaso que o Cinema Novo, a Teoria da Dependência ou a obra de Celso Furtado tiveram a repercussão internacional que tiveram. À guisa de contraprova, note-se como a perda deste dinamismo devolveu a cultura do país à sua irrelevância tradicional, da qual hoje todos sofremos.
Com o golpe de 64 a dimensão democratizante do processo chegava a seu fim. Mas não o próprio nacionalismo desenvolvimentista, que depois de uma curta interrupção –um momento inicial de submissão direta aos interesses norte-americanos– voltava e até se intensificava, agora sob direção e com características de direita. A tal ponto que uma fração da intelectualidade, mais desenvolvimentista e antiimperialista que democrática, acompanhou com certa simpatia o projeto dos generais de transformar o Brasil numa grande potência.
O ciclo chegou ao fim com os dois choques do petróleo, a crise da dívida e sobretudo com os novos saltos tecnológicos e a globalização da economia, que somados levantaram uma muralha e transformaram a paisagem. Nos anos 80 ficava claro que o nacionalismo desenvolvimentista se havia tornado uma idéia vazia, ou melhor, uma idéia para a qual não havia dinheiro. Nas novas condições de tecnologia, as inversões necessárias para completar a industrialização e a integração social do país se haviam tornado tão astronômicas quanto inalcançáveis. O nacional-desenvolvimentismo entrava em desagregação –e começava o período contemporâneo, que para os efeitos deste seminário poderíamos chamar de "nosso fim-de-século".
Como estamos entre críticos literários, é interessante notar que a realidade começava a se parecer com a filosofia, no caso, com a terra movediça postulada pelo desconstrucionismo. O processo da modernização, com dinamismo próprio, longo no tempo, com origens e fins mais ou menos tangíveis, não se completou e provou ser ilusório. Nestas circunstâncias, a desestabilização dos sujeitos, das identidades, dos significados, das teleologias –especialidades enfim do exercício de leitura pós-estruturalista– adquiriu uma dura vigência prática. Assim, o desenvolvimento nacional pode não ter sido nem desenvolvimento nem nacional, nem muito menos uma epopéia. O motor da industrialização patriótica esteve na Volkswagen e os esforços de integração da sociedade brasileira resultaram num quase-apartheid. A burguesia nacional aspirava à associação com o capital estrangeiro, que lhe parecia mais natural que uma aliança com os trabalhadores de seu país, os quais por sua vez também prefeririam as empresas de fora.

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