São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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O paradoxo de Jorge Velho

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

A fome de cativos levou os paulistas a armarem campanhas preadoras no Seiscentos. Quis os motivos da sedentarização desses guerreiros na virada do século? Documentos do processo opondo Domingos Jorge Velho às autoridades, após o destroço de Palmares, ajudam a compreender as metamorfoses dos bandeirantes.
Sotto-Mayor, governador de Pernambuco, relata em 1685 as circunstâncias que deram lugar ao engajamento dos sulistas. "Recebi aqui uma carta de uns paulistas que andam nos sertões, escrita a meu antecessor..., em que lhe pediam umas patentes de Capitão-mor e capitães para conquistarem aqueles gentios, e como isto encontrava (contrariava) as ordens de V.M. lhas não mandei. E, por estes homens serem os verdadeiros sertanejos, e se acharem com 400 homens de armas, os requeri para esta conquista dos Palmares, mandando-lhes patentes de conquistadores,... com que espero que estes homens, providos da ambição de lograrem as honras de V.M. venham a esta facção; e então terei por sem dúvida que chegou o tempo de verem estes (negros) levantados a sua ruína".
Impedidos de caçar índios, os paulistas topam a empreitada. Com outros bandeirantes, parentes, parceiros e "servos de guerra", Domingos Jorge Velho sitia os quilombolas. "Servos de guerra" eram os cativos índios, geralmente temiminó, treinados para expedições preadoras. Paulistas, zulus da África Austral, jágas de Angola, mamelucos do Egito e da Síria, todas estas hordas de caçadores de escravos usavam do mesmo recurso para compor suas tropas: apartavam seus prisioneiros mais aptos e os treinavam como guerreiros.
Conforme as táticas da guerra longa paulista –diversa da guerra curta ameríndia– Domingos Jorge Velho evita batalhas frontais, isola as aldeias rebeldes, bloqueia as trilhas, tala os campos, captura indivíduos isolados, incendeia roças, envenena poços, estabelece cercos prolongados na Serra da Barriga. Ao cabo de vários anos de combates, escaramuças e terrorismo, os bandeirantes eliminam em 1694 a resistência organizada dos afro-brasileiros em Palmares. Mas em seguida os vencedores não vão poder saborear os frutos da vitória.
Bem depressa, ex-proprietários retornam às suas terras, retomando as sesmarias até então abandonadas e prometidas aos bandeirantes. Sobe à corte a disputa, dando origem a uma série de protestos, requerimentos e memoriais que os paulistas enviam ao reino. Domingos Jorge Velho se mostra sagaz na defesa de seus interesses. Os manifestos nos quais ele e seu procurador, Bento Sorrel Camiglio, ressaltam os sacrifícios praticados no afã de servir à metrópole, se apresentam bem redigidos, perspicazes, irônicos.
Num texto de grande vivacidade –documento privilegiado do diálogo entre os luso-brasileiros e a metrópole sobre o sentido da colonização– eles elaboram para el-rei uma "breve digressão" sobre os objetivos do bandeirantismo. Concluindo, o comandante paulista elabora uma audaciosa defesa do cativeiro dos índios.
"Nossas tropas com que íamos à conquista do gentio bravo desse vastíssimo sertão, não é de gente matriculada nos livros de V.M. nem obrigada por soldo, nem por pão de munição. São umas agregações que fazemos alguns de nós, entrando cada um com os servos de armas que têm e juntos íamos ... não a cativar, como alguns hipocondríacos pretendem fazer crer a V.M., senão (a) adquirir o tapuia gentio bravo e comedor da carne humana para o reduzir ao conhecimento da urbana humanidade e humana sociedade à associação e racional trato, para por esse meio chegarem a ter aquelas Leis de Deus e dos mistérios da fé católica que lhes baste para sua salvação. Porque em vão trabalha quem os quer fazer anjos, antes de os fazer homens, e desses, assim adquiridos e reduzidos, engrossamos nossas tropas e com eles guerreamos a obstinados e renitentes a se reduzirem: e se depois nos servimos deles para as nossas lavouras, nenhuma injustiça lhes fazemos, pois tanto é para os sustentarmos a eles e a seus filhos como a nós e aos nossos. E isto bem longe de os cativar, antes se lhes faz um irremunerável serviço em os ensinar a saberem lavrar, plantar, colher e trabalhar para seu sustento, cousa que antes que os brancos lho ensinem, eles não sabem fazer. Isto entendido, senhor?"
Bandeiras eram empreitadas privadas, particulares. Nada deviam aos poderes públicos, à iniciativa metropolitana ou ao Tesouro Real. O cativeiro dos indígenas os incorporava à "humana sociedade", incutindo-lhes a prática do trabalho social, da agricultura comercial. Só índios forçados ao "racional trato" se tornariam sensíveis à religião.
Correlacionando a promoção social e religiosa dos nativos ao trabalho colonialmente útil, estes argumentos invertem os pressupostos dos Descobrimentos: Domingos Jorge Velho sugere que a catequese deve suceder, e não preceder, a socialização forçada dos ameríndios. Um século mais tarde o despotismo esclarecido pombalino tirará, num outro contexto, as consequências práticas desta virada ideológica.
O arrazoado dos bandeirantes se apraz em ressaltar seu mérito e valentia. Mas de repente, num torneio de frase, transparece o real objetivo do ataque a Palmares. A razão material, concreta, que lançou os sulistas no "mais áspero caminho, agreste, e faminto sertão do mundo", para matar e morrer na marcha mais trabalhosa, "faminta, sequiosa e desempararada que até hoje houve no dito sertão, nem quiçá haverá".
Ao enumerar documentos que lhe prometiam a posse das terras tomadas pelos quilombolas, Jorge Velho ressalta: "a não ser assim, que razão haveria, que largassem os Suplicantes (Paulistas) as terras maiores e melhores sem comparação, se se lhes tirar a longitude das praças marítimas, cuja posse logravam sem nenhum impedimento nem oposição, para virem conquistar outras?"
Do meio da querela jurídica e das juras de fidelidade a el-rei, salta o detalhe revelador da gana dos "lumpencolonialistas" embrenhados na Serra da Barriga. Alhures eles possuíam terras "maiores e melhores sem comparação" com as de Palmares, assim como numerosos "servos" indígenas. Mas estas propriedades tinham um grande empecilho: o afastamento das praças marítimas. Põe-se a nu o fator-chave do uso do solo no Brasil. Pensada fora desse contexto, a disponibilidade de terras se converte em variável sem sentido.
Parece ocioso demonstrar que o território da América portuguesa não constituía um espaço unificado. Esparsas manchas econômicas se conectavam aos portos comerciais. Colonos vivendo no interior destas áreas eram captados pela rede ultramarina de trocas. Porém, os que permaneciam ilhados pelo mar do sertão se descasavam do Atlântico. Daí o argumento paradoxal de Jorge Velho: "Os suplicantes têm muita parentela na capitania de S. Paulo, em a qual já não têm terras para se estenderem, e se querem vir ajuntar com os suplicantes".
Noutro documento Camiglio reitera: "A tenção dos ditos sam paulistas é de convocarem outros muitos moradores seus patrícios, que desejam de enxamear; porque em S. Paulo já não há aonde lavrem e plantem: e essa transmigração será cousa de grande utilidade a estas Capitanias (do Norte)".
Eis o enorme paradoxo: dando-se fé aos testemunhos dos bandeirantes –habilíssimos conhecedores dos sertões– no final do século 17 havia uma flagrante "falta de terras" em S. Paulo! Evidentemente não se pensa aqui no limite físico de terras. Nem tampouco da escassez de terrenos litorâneos. Centenas de léguas da costa permaneciam devolutas.
De resto, quando aponta os inconvenientes das fazendas possuídas por seus homens e por ele próprio em S. Paulo e nos ermos da Bahia, Domingos Jorge Velho não se refere à lonjura dos portos marítimos –lugar geográfico–, mas à distância separando estas terras das praças marítimas –lugar econômico. Para realizar o valor das mercadorias produzidas por seus índios, os bandeirantes precisavam transacionar com os negociantes das praças litorâneas.
Aliás, era a presença destes indivíduos que convertia, em todo o Império luso, um porto qualquer numa determinada praça comercial. O problema –todo o problema– é que estes mesmos negociantes, compradores de produtos regionais, também se apresentavam como vendedores de produtos importados e, em particular, de africanos.
Posse de terra e de nativos não garantem o acesso ao mercado atlântico. Para transformar o excedente extorquido aos ameríndios em mercadoria, o colono devia se enfronhar no circuito atlântico de trocas.
Desde logo, ele caía na injunção comercial –e não apenas demográfica (falta eventual de mão-de-obra nativa– de adquirir africanos e se amarrava mais à metrópole traficante. "Falta de terras" e "falta de braços" tem, portanto, muito pouco a ver com a geografia e com a demografia brasileira. Trata-se de variáveis conexas que se explicam e se compensam no âmbito da unidade mais ampla formada pelo sistema escravista sul-atlântico.
Adequação espacial e adequação social da colonização
"Corsários do sertão", insurretos imbatíveis nos combates do mato, errando de um lado ao outro no rastro das tribos, os paulistas assustam –quase tanto quanto os quilombolas– os governadores e os fazendeiros do Norte.
Ao término dos combates contra Zumbi, o governador de Pernambuco adverte a corte. Os paulistas "como gente bárbara indômita e que vive do que rouba" não deviam ser autorizados a fazer morada na região de Palmares. "Porque experimentarão as capitanias vizinhas maior dano em seus gados e fazendas que aquele que lhe faziam os mesmos Negros levantados."
Exagero, responde o Conselho, pois se os Paulistas quisessem, "como cientes em todo o sertão do Brasil, tiveram escolhido sítios inexpugnáveis donde pudessem avexar os vassalos de V.M.". Presumem os conselheiros que os arraiais dos bandeirantes seriam úteis "na defesa de praças de V.M. e ofensa aos mucambos dos negros e ao gentio brabo". Convinha entretanto guardar prudência: as terras eventualmente cedidas aos Paulistas deviam ser repartidas "interpoladamente com as que se houverem de dar aos moradores de Pernambuco, que assim ficarão (os Paulistas) divididos e livres da objeção do receio".
A "objeção do receio" reinol pesando sobre os bandeirantes volta à mesa no despacho enviado em 1700 a el-rei pelo governador-geral do Brasil, que acabava de deixar o posto de governador de Angola. De permeio a duas conflagrações intermetropolitanas, a Guerra da Liga de Augsburg (1689-97) e a Guerra de Sucessão da Espanha (1702-13), D. João de Lencastre se inquieta com a ausência de defesas militares em S. Paulo. Justo na altura em que aumentam as remessas do ouro de Minas.
De pronto, ele expõe a dubiedade política dos paulistas, os quais: "têm deixado, em várias ocasiões, suspeitosa a sua fidelidade, na pouca obediência com que observam as leis de V.M e ser gente por natureza absoluta e vária e a maior parte dela criminosa, e sobretudo amantíssima da liberdade, em que se conservam há tantos anos quantos têm de criação a mesma vila; e vendo-se hoje com opulência e riqueza que a fortuna lhes ofereceu no descobrimento das ditas minas, me quero persuadir sem o menor escrúpulo, são capazes de apetecer sujeitar-se a qualquer nação estrangeira, que não só os conserve na liberdade e insolência com que vivem, mas de que suponham podem ter aquelas conveniências que a ambição costuma facilitar a semelhantes pessoas, sendo a principal e a que eles mais suspiram a da escravidão dos índios".
Se evidencia o corolário político dos embaraços econômicos decorrentes do tráfico de ameríndios. Inversamente, se confirmam as vantagens da apropriação secundária de escravos (pelo comércio, como na África) e das desvantagens da apropriação primária (pela guerra, como no Brasil). Evoluindo fora das redes mercantis estabelecidas, compostas por gente adestrada no combate dos sertões, escapavam ao controle social metropolitano. Sua existência parecia potencialmente perigosa para o domínio colonial.
Essas tensões políticas, resultado da não-integração dos preadores no circuito de trocas atlânticas, desaparecem no começo do século 18, quando a atividade mineira gera um verdadeiro mercado interno na colônia. Bandeirantes empregam seus índios na mineração desde a descoberta de ouro em Minas Gerais. Famílias paulistas migram em seguida para o rio S. Francisco, onde estabelecem fazendas de gado. Gente importante como Mathias Cardoso de Almeida e Antônio Gonçalves Figueira segue o mesmo caminho. Outros, como Francisco Pedroso de Almeida, estabelecem fazendas de gêneros alimentícios ao longo das trilhas demandando Minas.
Se inaugura no interior da colônio um mercado onde os vendedores de ouro são dominantes. Gradualmente este mercado será conectado aos circuitos atlânticos e, em particular, ao tráfico negreiro. Abrindo novas possibilidades à pecuária e à cultura de gêneros alimentícios, este quadro econômico desagrega as redes de tráfico de ameríndios formadas no Centro-Sul do país. Prestemente, o reino capta a metamorfose dos bandeirantes. Sabedor em 1705 do estado crítico da Colônia de Sacramento, cercada de índios açulados pelos espanhóis, o Conselho Ultramarino estuda o envio de uma coluna bandeirante contra as aldeias hostis do Uruguai.
Contudo, os argumentos do conselheiro Freitas Serrão –homem de tino militar– levam ao abandono deste estratagema. Seu voto no Conselho resume em poucas linhas um século de empresa bandeirantista: "Suposto que a anos (os Paulistas) deram um assalto aos índios das aldeias castelhanas com bom sucesso, contudo então estavam estes sem o menor receio de semelhante invasão, e a um assalto inopinado não há forças que resistam, e os paulistas, por uso, penetravam o sertão, sustentando-se de seus frutos, guiados e defendidos de muitos índios que tinham domesticado, e agora, faltos desta gente e daquele exercício, e dados à cobiça do ouro e (tendo) sustento dos mantimentos de todo o Brasil que às minas conduz o interesse, não aceitarão com facilidade esta empresa; e mais, quando só o cativeiro dos índios poderia obrigá-los a ela, este não é permitido em guerra de cristãos, como são os índios das aldeias castelhanas (do Uruguai)".
A derrota na Guerra dos Emboabas (1707-1709) soa o toque final para o autonomismo bandeirante. Mas a altivez que o controle do cativeiro indígena fez medrar entre os habitantes de S. Paulo impressionou duradouramente os escritores. Nas páginas cheias de melancolia dedicadas à Independência do Brasil, o historiador português Oliveira Martins medita em 1880 sobre a dura guerra que teria sacudido a colônia, caso a ruptura de 1822 tivesse ido comandada, não pelo "político" José Bonifácio de Andrada, mas "por algum genuíno representante do antigo espírito paulista".

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