São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A utopia moderna do diálogo

BARBARA FREITAG
ESPECIAL PARA A FOLHA

A recepção do filósofo alemão Juergen Habermas no Brasil aconteceu, via de regra, sem intermediações. Os livros de Habermas foram traduzidos para o português do original alemão e os intérpretes de Habermas no Brasil, em sua maioria, foram estudá-lo na Alemanha ou de lá deixaram vir seus últimos trabalhos.
O interessante trabalho de David Ingram, "Habermas e a Dialética da Razão", lançado recentemente pela Editora da Universidade de Brasília e cuidadosamente traduzido do original inglês por Sérgio Barth, inaugura uma nova etapa da recepção de Habermas no Brasil. Agora, o leitor brasileiro tem acesso fácil a um excelente livro que reflete a recepção de Habermas nos Estados Unidos e a contribuição que cientistas sociais americanos (Mead, Parsons, Kohlberg, entre outros) deram para a formulação da teoria habermasiana.
Como o próprio Ingram argumenta, seu livro pouco teria a acrescentar ao magnífico trabalho de McCarthy ("The Critical Theory of Juergen Habernas", MIT Cambridge, 1978), se nesse trabalho já tivesse sido contemplada a "Teoria da Ação Comunicativa" (1981). Mas a tese de McCarthy, que estudou com Habermas em Frankfurt, termina antes da sua "paradigmatische Wende" (mudança paradigmática). Algo que, aliás, também é válido para o livro introdutório a Habermas no Brasil.
Ingram pôde beneficiar-se duplamente do esforço pioneiro de McCarthy nos Estados Unidos, baseando-se em sua interpretação e sua tradução de Habermas; pois foi McCarthy quem assumiu o trabalho espinhoso de traduzir o "opus magnum" de Habermas "Theorie des kommunikativen Handelns" (1981, dois volumes com um volume complementar publicado em 1983) para o inglês.
Mas coube a David Ingram fornecer a visão panorâmica da obra habermasiana, que toma essa teoria da ação comunicativa como pedra angular de suas reflexões passadas e futuras. Sem ser redundante, Ingram volta com as pinceladas necessárias a obras de Habermas anteriores a 1981, mostrando a evolução do pensamento do autor que o levam à sua mudança paradigmática da filosofia da consciência para o pragmatismo linguístico ("linguistic turn"). Feito isso, Ingram mostra como esta mudança influenciou a leitura que Habermas faz de autores pós-modernos, como Derrida, Foucault, Lyotard e outros.
Para o leitor brasileiro, o livro de Ingram é, por isso mesmo, o que há de mais completo e abrangente sobre a obra de Habermas em língua portuguesa, além da própria obra de Habermas já traduzida.
O autor de "Habermas e a Dialética da Razão" estrutura seu livro seguindo a estrutura da "Teoria da Ação Comunicativa", debatendo com os autores que Habermas discute. Nesse trabalho interpretativo, ele procede de forma mais didática que criativa, pois prepara, em um passo inicial, o leitor no uso dos conceitos e na compreensão da teoria de Weber, Lukács, Mead, Durkheim, Parsons, entre vários outros, para, em um segundo passo, apresentar os argumentos que Habermas desenvolve para criticá-los, complementá-los, utilizá-los como pontes para chegar a sua teoria e prática discursiva, que substitui o monólogo pelo diálogo, o trabalho pela linguagem.
Ingram informa mais do que critica, reproduz mais as idéias em discussão do que produz novas idéias a partir delas.
A qualidade ímpar da tradução, que se destaca por seu português primoroso, ajuda e facilita a leitura. Com raras exceções, Sergio Barth encontrou soluções brilhantes para os complicados termos habermasianos. Quando a versão brasileira não capta o conceito usado por Habermas, isso se deve à maneira nem sempre feliz pela qual Ingram introduz os conceitos em inglês. Um exemplo é o termo "Lebenswelt", traduzido por "lifeworld", que Barth transpôs como "mundo vivo" para o português.
Não se trata de um descuido do tradutor brasileiro, mas de uma dificuldade para a qual Barth chama atenção em um pé de página. Os termos usados na discussão brasileira, já previamente em curso, (mundo vivido ou mundo da vida) são, contudo, melhores e mais corretos. Outro exemplo seria o conceito de "Wahrhattigkeit", que passou a ser traduzido por "sinceridade", no meu entender insatisfatório, pois o português tem em "veracidade" um conceito perfeitamente equivalente. "Sinceridade" seria em alemão "Aufrichtigkeit", palavra que não tem em sua raiz a referência à verdade ("Wahr/heit", "Sahr/haftigkeit").
Estes dois exemplos mostram que traduzir um texto de ou sobre Habermas é mais do que um trabalho mecânico. Traduzir significa, como lembra o próprio Habermas, "recriar o texto". Seja como for, os habermasianos deveriam reunir esforços e publicar um glossário em que se convencionasse o uso de certos conceitos centrais da obra habermasiana, para que as arbitrariedades na tradução sejam reduzidas.
O grande mérito da edição brasileira aqui em discussão consiste no fato de que ela preserva em itálicos e em parênteses o conceito alemão, permitindo ao leitor que domina esse idioma "reencontrar" o "seu Habermas".
Voltemos ao texto de Ingram. Especialmente feliz pareceu-me o capítulo (seis) em que o autor americano discute o "Discurso sobre a Modernidade: Um Interlúdio Filosófico", pois aqui Ingram fala de algo que realmente conhece bem: o discurso estético da modernidade e da pós-modernidade que inspirou o filosófo. Ingram tece reflexões mal ou pouco desenvolvidas na "Teoria da Ação Comunicativa", associando-as ao "Discurso Filosófico da Modernidade" (1990) do autor frankfurtiano, extraindo desse esforço conclusões próprias e originais que transcendem Habermas e sua compreensão menos sofisticada da questão estética.
Sem dúvida, Ingram contribui para uma melhor compreensão de Habermas. Mas apesar de incluir obras decisivas produzidas durante a década de 80, Ingram, como McCarthy, não consegue abranger toda a obra de Habermas. Em um estudo concluído em 1987, Ingram obviamente já não pôde levar em consideração a importante publicação dos mais renomados intérpretes de Habermas, reunidos na coletânea "Zwischtungen im Prozess der Aufklãrung" (Balanço Intermediário no Processo do Esclarecimento), publicada em homenagem aos 60 anos de Habermas na Alemanha, em 1989, como também não pôde incluir no debate o tratado de filosofia do direito "Faktizitãt und Geltung" (Facticidade e Validade), publicado por Habermas em 1992. Não seria correto criticá-lo por isso. É difícil, senão impossível, estar "atualizado" com a obra de um autor vivo em plena fase produtiva.
E Habermas não pára de produzir, escrever, discutir. Impressionante é o seu debate sobre o nacionalismo, travado em Varsóvia com Adam Mischnik por iniciativa de Adam Krzeminski, editor do semanário polonês "Polityka", em dezembro de 1993 (e republicado na "New York Review of Books" de 24/11/94).
Neste, como em debates anteriores, o autor da "Teoria da Ação Comunicativa" parece querer provar que é possível praticar a ação comunicativa, cuja essência é a competência dialógica. E, em tempos em que as armas ameaçam falar mais alto, dialogar é preciso...

Texto Anterior: POESIA; AUTÓGRAFOS
Próximo Texto: Na rota de colisão entre indivíduo e sociedade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.