São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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Na rota de colisão entre indivíduo e sociedade

VINICIUS DE FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Entre a sociedade e os indivíduos que a compõem, qual dos pólos privilegiar? Pergunta ingênua? Só à condição de já dispormos, previamente, de uma resposta. Uns dirão que "sociedade" designa um nível de realidade acima dos simples indivíduos que figuram nela, que os estados e disposições individuais não bastam para compreendermos os fenômenos sociais. Outros, contra a primeira solução, que tais fenômenos só são compreensíveis com base nos comportamentos e ações dos indivíduos, singularidades a que deve se reportar toda lógica do social.
É em torno desta disputatio, que por longa data opôs durkheimianos e individualistas metodológicos, que se movem os ensaios de Norbert Elias recolhidos em A Sociedade dos Indivíduos. A edição divide-se em três partes, seguindo a obsessão do autor em apresentar uma solução mais satisfatória que a de um dos lados da alternativa. O primeiro ensaio é de 1939, o último, de 1987; a eles se intercalam escritos inéditos da década de 40.
É impressionante como, ao longo de quase 50 anos, os incursos de Elias à relação entre sociedade e indivíduos se atêm a certas premissas, que articulam toda sua produção sociológica. Ele parte do reconhecimento de que cada indivíduo tem um campo limitado de possibilidades no interior da sociedade na qual se vê inserido, sua função. Esta função não apenas precede o indivíduo; sua variação define diferentes tipos de sociedade. Entretanto, já nos adverte em 1939, devemos nos precaver de enxergar nesta gramática das relações sociais algo externo e acima dos indivíduos. Fazê-lo significaria transformar a sociologia numa metafísica, pois estaríamos atribuindo a toda regularidade social o caráter de substância, de algo supra-individual, em analogia às forças substanciais naturais. Tampouco serve, na contramão do primeiro equívoco, substancializar o indivíduo, como se, antes de toda relação, ele já fosse dotado de uma "natureza" (a liberdade, dirão alguns), de uma essência à qual se sobrepõem, em um segundo momento, determinações sociais.
A solução de Elias aproxima-se das análises de Wittgenstein sobre a linguagem no Tractatus (1921). Ele concebe a relação entre sociedade e indivíduos tal como a entre a melodia e suas notas. Não há como pensar o simples sem examinar, desde o início, sua inserção na estrutura. Mas esta estrutura também não subsiste sem a articulação dos indivíduos que a compõem. Ela é, justamente, esta composição. Em si mesmo, portanto, o indivíduo é insaturado.
É nas relações com outros indivíduos que ele satura suas valências, emergindo daí como portador de uma determinada identidade social. Substancializar esta identidade –por exemplo, concebendo-a sob o modelo de ação e reação entre corpos físicos, ou sob o modelo fisiológico da relação entre estímulo e resposta– equivale a perder de vista a historicidade intrínseca aos fenômenos sociais. Noutros termos, equivale a perder de vista que o processo de individuação que define indivíduos transcorre no tempo e se modifica ao longo da história.
Com isto, a própria dinâmica das transformações sociais é reinterpretada. Não há porque explicá-las por uma causalidade externa às estruturas funcionais em que se inscrevem os indivíduos, hipostasiando as mudanças a que dão origem na figura hegeliana do Espírito Absoluto, da luta de classes ou (do outro lado da disputa) na decisão soberana dos grandes homens da história. Se há mudanças, estas se devem ao fato de que, em certas formas de vida, os indivíduos se alinham em grupos funcionais que entram em conflito, empurrando toda rede social para novas configurações estruturais. Veja-se, a este respeito, A Sociedade da Corte e O Processo Civilizador, onde Elias examina a modernização da sociedade ocidental, perseguindo o desenvolvimento da imagem que os indivíduos fazem de si mesmos em função dos realinhamentos estruturais que pontuam suas identidades sociais.
No fundo, a própria oposição entre indivíduo e sociedade é fruto da imagem que o homem moderno tem de si mesmo. Sub-repticiamente, tal imagem se converte em premissa da investigação sociológica, orientando a compreensão das relações entre indivíduo e sociedade. Elias reencontra seu ponto de partida: a conversão da sociologia numa metafísica que substancializa indivíduo ou sociedade decorre do estruturamento social do indivíduo moderno. A antinomia entre coletivistas e individualistas, portanto, dissolve-se numa disputa ideológica –que, o autor o reconhece, possui uma enorme eficácia social. Manobra ousada, para sorte do leitor: a um só tempo, faz de Elias crítico do dogmatismo sem alinhá-lo nas fileiras do positivismo.

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