São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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Inéditos lançam luz no enigma de Babel

BORIS SCHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O recente centenário de Isaac Babel (ele nasceu em julho de 1894) parece ter passado despercebido pela nossa imprensa. No entanto, a ocasião era muito boa para se pensar um pouco sobre o que ele representa para nós atualmente e indagar sobre o que pode haver de novo na imagem do escritor que nos surge após o aparecimento de tantos materiais sobre ele.
Em primeiro lugar, vejamos como ele foi publicado na Rússia. Se em vida era bastante popular tanto no país como no Ocidente, na Rússia houve um bloqueio total de sua obra, iniciado ainda antes de sua prisão e fuzilamento em 1941. Não só os seus escritos não eram mais publicados, mas até o seu nome foi excluído de enciclopédias, histórias da literatura etc.
No período khruschoviano ocorreu a sua reabilitação, mas a reedição de seus textos para o grande público, que se deu nos anos seguintes, foi muito pobre: um pequeno volume em 1957, com um prefácio comovido de Iliá Erenburg, que fora seu amigo, e outro, pouco maior, em 1966, ambos de "obras escolhidas". Ora, escolher tanto, numa obra tão reduzida!
Foi somente com a glasnost, em 1990, que saíram dois volumes de seus textos, organizados pela viúva, A.N. Pirojkova (1). É a edição mais completa até hoje, mas que ainda se ressente das dificuldades que existem para a recuperação do que se extraviou com a repressão stalinista. Se no caso de muitos autores, houve grandes surpresas, com o aparecimento de obras que mudam completamente o quadro da literatura russa após 1917, nessa edição figuram poucos escritos que não se conheciam antes.
Assim, não apareceu até hoje o romance que, segundo se sabe, estava escrevendo e que teria concluído antes de ser preso. Entre os estudiosos de sua obra, havia muita expectativa em relação a ele, mas foram vãos, neste caso, os esforços da comissão encarregada de vasculhar os arquivos do KGB, à cata de obras literárias. Trata-se do mesmo romance cuja busca é tema central do livro Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos de Rubem Fonseca. Também não se encontraram as traduções de Sholem Aleikhem e I.L. Peretz que Babel teria realizado e que seriam importantes para se compreender melhor sua relação com a cultura iídiche (foi V.V. Ivanov, que tem com Babel uma relação de família, quem me passou esta informação; aliás, há o fato concreto de que ele assinara contrato para a tradução do primeiro desses autores).
Embora sejam poucos os textos novos que apareceram, nem por isso deixam de ser importantes. Fica-se lamentando que a abertura dos arquivos não tenha proporcionado maiores achados, e isso parece indicar que houve simplesmente queima de materiais, pois encontrou-se a relação dos papéis confiscados no ato da prisão: 517 cartas e cartões postais, 18 cadernos de anotações e 15 pastas com manuscritos. Enquanto não chegam novos dados, temos de explorar o que realmente veio à luz.
Pela primeira vez, tem-se uma publicação provavelmente completa dos escritos jornalísticos de Babel, no período anterior a 1925, quando, o conselho de Górki, decidira viver mais intensamente e amadurecer mais, antes de retomar a obra literária. Algumas dessas crônicas e reportagens já haviam saído em russo no Ocidente, mas faltava publicação mais completa.
Entre elas, há páginas impressionantes de um escritor que ainda se considerava imaturo. Principalmente certos relatos seus sobre a fome em Petrogrado após 1917 têm, no meu entender, praticamente o mesmo nível dos contos de Cavalaria Vermelha. Surge assim uma realidade sinistra, mostrada com aquela crueza e com aquele toque lancinante tipicamente babelianos. A máxima concisão, aquela concisão que chegou a suscitar inveja em Hemingway, já aparece nesses escritos em toda a plenitude.
Por isso mesmo, chega a ser chocante a mudança para um tom francamente laudatório em relação às conquistas do regime, que apareceu em reportagens para jornais do Cáucaso no período imediatamente posterior. Essas mudanças de tom, essas tentativas de não se diferenciar do diapasão da imprensa na época, não seriam responsáveis pelas fases de completo emudecimento, quando o escritor certamente lutava consigo mesmo, tentando criar algo construtivo, diferente dos contos que o consagraram mundialmente?
Outro texto que aparece mais completo é o seu diário da guerra russo-polonesa de 1920, e que seria o ponto de partida para Cavalaria Vermelha. Ele já fora publicado parcialmente num volume da série "Herança Literária", editada pela Academia de Ciências da URSS, acompanhado de textos que o reelaboravam, mas ainda não eram os contos (2).
O diário é, por si, obra de um grande escritor. Fragmentário, frenético, dolorido, seria reorganizado na versão final. Apesar do apego de Babel ao fato imediato, os relatos que publicou diferem muito dessas anotações imediatas. Aliás, o escritor afirmaria que muitas falhas do livro eram devidas à perda da maior parte de sua anotações.
(Aí vão alguns trechos: "Campos históricos nos arredores de Bierestietchko, túmulos cossacos. E o mais importante não cessa de se repetir: cossacos contra poloneses, sobretudo o vilão contra o senhor. Não esquecerei o povoado, os pátios cobertos, compridos, estreitos, fétidos, tudo isso tem 100 a 200 anos, a população é mais vigorosa que em outras partes, o principal é a arquitetura, casinhas de um azul aguado, ruelas, sinagogas, camponesas."
"Comício no parque do castelo, os judeus de Bierestietchko, o estúpido Vinokurov, criançada correndo, elege-se o comitê revolucionário, judeus enrolando a barba no dedo, as judias ouvem falar do paraíso russo, da situação internacional, das revoltas na Índia". (...) "O que é o nosso cossaco? Camadas: surrupiagem, valentia, profissionalismo, espírito revolucionário, crueldade animal". (...) "um campo terrível, semeado de mortos a sabre, crueldade inumana, feridas inconcebíveis, crânios fraturados, corpos brancos e nus brilham ao sol, caderninhos de notas espalhados, folhas soltas, livros de soldado, evangelhos, corpos no trigal".
É muito compreensível que esses apontamentos não pudessem sair na íntegra antes da "glasnost". Incorporado à cavalaria cossaca que entrou na Polônia, numa região densamente povoada de judeus, Babel ficou particularmente impressionado com o que eles sofreram. Aparecem cenas dantescas de atrocidades cometidas pelos poloneses em retirada, mas chega a escrever: "Pogrom em Jitômir pelos poloneses, mas depois, naturalmente, pelos cossacos".
Ele faria um trabalho insano de arrumação desses fragmentos, criando um encadeamento, um enredo, ainda que sumário e incisivo, porém essas notas apressadas e cruas têm um encanto peculiar e, a partir da edição de 1990, passam a existir de modo mais completo.
Ao mesmo tempo, há uma dedicação muito grande à sua tarefa de ficcionista, e os próprios textos das reportagens a que me referi há pouco têm algo a mais do relato puro e simples. Tem-se assim aquela oscilação, que apontei mais de uma vez em Babel, entre a "literatura facta", a literatura do fato real, que foi surgindo com a necessidade de transmitir a vida tumultuosa após 1917, e a "prosa ornamental" russa, que se desenvolveu a partir do início do século.
No livro são publicadas numerosas cartas. Muitas delas já eram conhecidas no Ocidente, graças principalmente à divulgação feita pela filha do escritor, Nathalie Babel, que se fixara no Ocidente com sua mãe, a primeira mulher do escritor. Outras, porém, são inéditas, e algumas contribuem para esclarecer fatos da biografia.
Por exemplo, em seu livro sobre o pai, Nathalie Babel afirma (3) que a referência feita por ele, em sua autobiografia sucinta, a trabalhos que teria desenvolvido junto à "Tcheká", a instituição responsável pela luta contra os opositores ao regime, seria devida a uma vontade de agradar às autoridades e decorreria também de seu pendor para as mistificações.
Os materiais agora divulgados confirmam, porém, aquela participação no aparelho repressor: fora intérprete da "Tcheká" de Petrogrado, testemunhando então interrogatórios e execuções.
O seu fim trágico tem relação com esta sua proximidade dos órgãos da repressão, pois sua prisão ocorreu depois que o chefe da polícia política, NIcolai Ijóv, foi preso e encarcerado (Babel frequentava sua casa e tivera uma ligação amorosa com sua mulher).
Por mais parcos que sejam esses elementos biográficos, temos de reconhecer que o esclarecimento de algumas situações tem sido maior que a divulgação de textos cujo aparecimento era esperado com a abertura dos arquivos.
Sobretudo, já houve divulgação considerável dos materiais do processo de Babel, graças principalmente a publicações na imprensa russa por A. Vaksberg e Vitáli Chentálinski (este publicou também, em francês, um vasto livro, provavelmente inédito na língua original, sobre os materiais literários nos arquivos do KGB) (4).
As atas do interrogatório (guardadas, como era de praxe, numa pasta com os dizeres "khranit vietchno", isto é, "guardar para a eternidade", em contradição, lembra Chentálinski, com outra frase aposta a esses documentos, "soviercheno siecrietno", "rigorosamente secreto") constituem um documento aterrador, acompanhado do último retrato, em que ele aparece completamente aniquilado, sem aquela vivacidade que se conhece de outras fotografias: rosto balofo, olhos vagos, inexpressivos, seria realmente Babel?
No decorrer da inquirição, certamente sob tortura, ele deixou escapar informações completamente absurdas sobre escritores seus conhecidos. Depois, voltando a um estado mais consciente, fez esforços desesperados para se desdizer. Encaminhou declarações e mais declarações à procuradoria, confessando que caluniara pessoas inocentes ("cometi um crime") e insistiu em que precisava ser ouvido. "Peço que me ouçam", implora, mas é tudo em vão, até o seu fuzilamento.
As páginas deste processo, apesar de seu patético, como documento humano, apresentam um interesse especial para os estudos literários. Chentálinski sublinha, em seu livro, a importância de um material que ele desconhecia, quando fizera a primeira divulgação dos dados de arquivo sobre Babel: um depoimento escrito de próprio punho durante três dias e três noites, por ordem de seus inquiridores. Se ali aparece a mesma auto-acusação de espionagem a favor de potências hostis, com detalhes completamente inverossímeis, outras anotações apresentam interesse especial para o conhecimento do escritor.
E o mesmo se pode dizer das informações prestadas por dedos-duros, sobre o que eles ouviram de suas conversas com amigos, muitas vezes sobre temas de literatura, e que figuram no processo. Haverá muitos exemplos, na história, de autos de processo que se tornam importantes documentos literários?
Reunindo-se o que subsiste dos escritos de Babel, os registros de seus depoimentos e os numerosos testemunhos de amigos e familiares, sua personalidade aparece, em determinados momentos, sob uma luz forte, continuando, porém, a desafiar nossa compreensão.

(1)Isaac Babel, "Sotchiniênia", Obras, Moscou, Literatura
(2) "Litieratúrnoie nasliedstvo", vol. 74, Moscou, 1965. Cf. minha resenha sobre esse livro, "Inéditos de Isaac Babel", Suplemento Literário de "O Estado de S. Paulo", 27-5-1967
(3) Isaac Babel: The Lonely Years", New York, Farrar & Straus, 1964
(4) Vitali Chentalinski, "La parole ressuscitée - Dans les archives littéraires du KGB", Paris, Robert Laffont, 1993

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