São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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Festas do sagrado e do profano

LILIA MORITZ SCHWARCZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que se diz por aí é que "no Brasil tudo acaba em festa". Crises políticas e econômicas, mortes e desastres, esportes e vitórias –qualquer momento parece bom para uma nova comemoração. No entanto, uma coisa é afirmar o fato e constatar a sua vigência. Outra, totalmente diferente, é problematizar a sua existência, pensar nos seus contornos culturais e sociais.
Ora caracterizadas como momentos de alienação coletiva, ora como espaços de manifestação do mais ingênuo folclore, as diferentes festas populares têm sido objeto de desprezo ou da mera curiosidade. Talvez seja o momento de refletir sobre a permanência dessas festas e sobre uma certa singularidade nacional, aliada a essa "mania de tudo comemorar".
Parati foi sobretudo uma cidade colonial, transformando-se em pólo irradiador durante o período de mineração, quando assumiu papel importante no controle de circulação do ouro. Foi só com a aguardente e, no século 19, com o apogeu do café, que o vilarejo alcançou maior prosperidade. Localizada de forma equidistante entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, Parati esteve integrada aos diferentes sistemas de exploração econômica, apesar de sempre ocupar uma posição subordinada.
No entanto, foi justamente o seu relativo isolamento que mais contribuiu para o desenvolvimento de tradições e de rituais enraizados. Partindo do relato dos moradores de Parati, a autora descobriu "uma cidade das festas", onde o "festar", muito mais do que uma exibição turística, apresenta-se como atividade que constantemente recobre, retoma e cria uma identidade local. É por meio das festas que passado e presente encontram-se entrelaçados, visíveis na permanência das tradições, assim como nas mudanças a elas incorporadas.
Momento de encontro entre a memória coletiva e a individual, entre o sagrado e o profano, as festas guardam uma sequência ritual –entre novenas, missas, procissões e folguedos– que se mantêm basicamente inalterada, apesar das adaptações a que se vêem sujeitas. Trabalhando com a realidade polifônica das festas populares de Parati, a autora revela como, apesar de seu caráter cíclico e regular, esses eventos acabam representando momentos de ruptura: a comunidade renova seus laços com o sagrado, mas também reforça seus laços sociais; exalta sua fé religiosa mas encontra espaço para o lazer e para o divertimento. Espaço para a realização do ritual religioso e para o ritual da fofoca, o final de uma grande festa –como a da Semana Santa, Padroeira ou São Benedito–, significa, também o início de outro processo e a organização de um novo evento.
Muito se poderia dizer sobre as várias festas que homenageiam santos e louvam a Deus, ou mesmo sobre o papel das irmandades. Mais importante é, no entanto, destacar questões presentes neste estudo particular, mas que levam a repensar as festas cívicas nacionais. Na verdade, o problema central é como lidar com as tradições sem cristalizá-las e transformá-las em folclore; ou então, como introduzir as mudanças sem desconhecer velhos costumes históricos. Entre a permanência e a mudança, o melhor seria ficar com os dois.
É nesse sentido que as festas, enquanto rituais coletivos, ocupam um local destacado no imaginário popular. Acionam o particular e o coletivo, a memória individual e o contexto, em um jogo de poucos perdedores. O grande mérito desse livro, portanto, é mostrar, por meio de um estudo meticuloso, como lutar por uma "tradição pura" é um falso problema, assim como advogar em favor de mudanças racionais que se imporiam sobre as "mentalidades atrasadas" de nossos festeiros nacionais.
"Parati" ilumina um tema, e um grande mal entendido: o de supor que a entrada na modernidade significa a supressão dos rituais e de léxicos particulares. É só levando a sério nossa mania de "festar" que se pode compreender uma certa história cultural particular, que se escreve com muitas mudanças e inúmeras permanências.

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