São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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O racismo e os fatos nos EUA

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

Um bom título, uma assinatura que respeito e um tema a respeito do qual eu havia escrito antes capturaram minha atenção no Mais! de 6 de novembro passado.
"A Curva do Sino' é um caso de inveja do pênis", por Marilene Felinto, é um artigo inteligente e instigante, que já provocou resposta de outros jornalistas da Folha.
Retorno a ele, não por causa do livro "A Curva do Sino". Acho, como Felinto, que ele não merece todo o barulho que provocou. A confusão só aconteceu porque ele foi lançado com grande senso de marketing.
O que me chocou no texto de Felinto foi esta frase: "Não há pior lugar no mundo para um negro hoje do que os EUA." Ela é injusta e não se baseia em fatos. Os leitores da Folha merecem que seja corrida.
Sou branco, o que –suponho– já me desqualifica aos olhos de Felinto para escrever sobre negros. Mesmo assim, vou me arriscar.
Aliás, uma das mais curiosas características do "multiculturalismo" totalitário é a de acusar os brancos de racistas e indiferentes quando não tratam dos negros e de paternalistas e prepotentes quando tratam.
Não conheço todos os países do mundo para afirmar, ao contrário de Felinto, não haver melhor lugar no mundo para um negro hoje do que os EUA. Mas desconfio que tal frase esteja mais perto da verdade do que a outra.
Essa impressão se baseia em observação aleatória e em dados estatísticos. Em nenhum outro país que visitei eu vi tantos negros como nos EUA dirigindo Mercedes-Benz ou BMW, comendo em restaurantes de luxo, frequentando museus ou viajando na primeira classe de aviões.
Nem na Nigéria, por exemplo, a mais rica nação negra, esses símbolos de sucesso material são vistos em poder de tantos negros como nos EUA.
A expectativa de vida na Nigéria é de 48 anos para os homens e 50 para as mulheres. A dos negros norte-americanos é de 65 para os homens e 74 para as mulheres. Será melhor para um negro viver na Nigéria do que nos EUA?
Não vou nem chegar ao extremo de usar como exemplos outros países negros em que estive, como Cabo Verde ou Haiti, ou aonde nunca fui, mas é fácil imaginar as condições de vida, como Somália ou Ruanda.
Vou ficar apenas com a Nigéria, onde só 42% da população chegam à escola primária (em comparação, 75% das crianças negras nos EUA terminam o segundo grau e 33% chegam à universidade).
A mortalidade infantil na Nigéria é de 96 por mil e entre os negros norte-americanos, de 17,6 por mil.
Felinto poderá dizer que a situação social da Nigéria é produto da exploração internacional do imperialismo. Mesmo que fosse verdade, se eu fosse negro, preferiria que meu filho nascesse nos EUA do que na Nigéria.
Ela também poderá argumentar que os indicadores sociais e econômicos dos brancos nos EUA são superiores aos dos negros, o que é correto. Ainda assim, é inegável que o negro dos EUA vive melhor do que o da Nigéria.
Mas talvez eu pense assim por ser branco e não sofrer a discriminação que os norte-americanos dirigem contra os negros. Em compensação, sou estrangeiro e não tenho cara de Wasp ( white anglo-saxon protestant, apelido dado às elites brancas tradicionais nos EUA), o que já me fez também algumas vezes vítima de discriminação no total de seis anos em que vivi nos EUA.
Por isso tenho alguma empatia com a condição negra nos EUA e continuo achando que este não é o pior lugar do mundo para um negro viver hoje.
Os negros são 12% da população dos EUA. Há 38 negros na Câmara federal de 435 integrantes, um na Suprema Corte de nove. Nas pesquisas de intenção de voto para a Presidência em 1996, um negro, o general Colin Powell, aparece com frequência em segundo ou terceiro lugar.
Mais de um terço dos 30 milhões de negros pertencem à classe média. Uma em sete famílias negras nos EUA têm rendimentos superiores a US$ 50 mil anuais e o salário médio do negro neste país (US$ 20.200 anuais) deixaria muitos brancos brasileiros bastante felizes.
A indústria da publicidade gastou US$ 800 milhões no ano passado para atingir os consumidores negros nos EUA. Cerca de 20 filmes de alto orçamento foram dirigidos por negros em 1993. O canal por cabo BET, 24 horas por dia de cultura negra, fatura mais de US$ 30 milhões em publicidade por ano.
Intelectuais negros aparecem com frequência em jornais, revistas e emissoras de TV dos EUA. Não são aves raras, como no Brasil.
Nos programas de televisão, personagens negros já se livraram há muito tempo dos estereótipos ainda em vigor no Brasil.
Felinto afirma, lá pelas tantas, que no Brasil ofensas raciais podem ser coibidas por lei penal. Nos EUA, este ano, a rede de lanchonetes Denny's teve que pagar US$ 54 milhões para indenizar clientes negros que alegaram ter sido pior tratados que brancos nos restaurantes da cadeia.
Com todos esses dados, não pretendo argumentar que não haja problema racial nos EUA. Seria uma imbecilidade. Os norte-americanos são quase obcecados pela questão racial.
Negros continuam sendo discriminados por brancos. mas muitos deles agora discriminam os hispânicos. Os conflitos de rua em Washington em 1991 foram o produto da tensão acumulada entre negros e hispânicos.
Muitos negros nos EUA são racistas e disseminam o ódio por brancos e por judeus em particular, além de hispânicos.
Ser negro ou hispânico ou árabe ou vietnamita ou brasileiro nos EUA não é fácil e vai ficar cada vez mais difícil, como provaram as eleições deste mês, em especial a aprovação na Califórnia da Proposição 187 (que proíbe o acesso de imigrantes ilegais a serviços públicos como saúde e educação).
Mas, ainda assim, o padrão de vida, o acesso a oportunidades, o respeito à cidadania e às leis nos EUA são muito melhores do que em muitos outros países e isso vale para todas as etnias, inclusive a negra.

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