São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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Montagem reduz "Lisístrata"

MARIO VITOR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

A favorita das comédias de Aristófanes, Lisístrata dá margem a montagens destinadas a extrair o máximo da obscenidade. A história, representada pela primeira vez em 411 a.C., mostra uma greve de sexo pela paz, articulada pelas mulheres das cidades gregas em guerra. A trama engendra situações muito engraçadas.
Cansadas do prolongado sacrifício de guerra, com os maridos sempre no campo de batalha, mulheres dos maiores soldados de Atenas e Esparta se unem, lideradas pela prostituta Lisístrata, para que seus maridos interrompam os combates e reassumam as tarefas em casa e na cidade.
Não é a mais obscena das comédias de Aristófanes (cerca de 455-depois de 388 a.C), embora os atores, fiéis ao texto, depois de algum tempo de greve, circulem pelo anfiteatro do Tuca Arena em desespero, ostentando espécies de falos arroxeados de diversas proporções e submetidos a impagáveis sessões de pancadas.
O texto original foi submetido a algumas adaptações feitas por Domingos de Oliveira e rebatizado como "As Guerreiras do Amor", o que resultou em trabalho aquém do original.
Talvez esgotada pelo esforço despendido na notável montagem da tragédia "Áulis", a companhia liderada pelo diretor e principal ator Celso Frateschi agora parece ter ambicionado muito pouco. Não consegue nesse trabalho criar mais do que boas chances de riso.
Em "Áulis", o choque entre interesses de Estado e laços de amor faz jus ao verdadeiro paroxismo presente no original de Eurípides (o general Agamêmnon sacrifica a própria filha Efigênia, para que sua frota possa deixar o porto e combater Tróia).
É curioso perceber que o acesso a determinados problemas (as questões de Estado, as relações familiares) abordados pelo teatro grego parece hoje mais fácil nas montagens das tragédias do que nas das comédias. Estas parecem favorecer produções adaptadas ao gosto das platéias modernas, sendo mais dóceis a expectativas de leveza da parte do público.
Nessa linha, "Guerreiras do Amor" é uma montagem conservadora. Deixa escapar o contexto presente no original de Aristófanes. Reduz as aspirações do texto a uma piada de fôlego curto.
O original de Eurípides, no contexto ateniense, era uma ousadia, um ultraje, uma comédia quase antipatriótica montada numa cidade exaurida por 20 anos de guerra, em que nem heróis-generais são poupados do ridículo ("O que essa cidade precisa é um homem", diz a prostituta Lisístrata). Isso dois anos depois de a expedição ateniense à Sicília ter sido aniquilada em meio a pesadas baixas, sofrimento e vergonha. No mesmo ano de 411 a.C., a Constituição ateniense fora derrubada.
Não é à toa que as mulheres rebeladas em greve de sexo ocupam a própria Acrópole, área central e ponto mais alto de Atenas, sede das mais importantes instituições militares e religiosas. A platéia ateniense presente à estréia da peça assistia a uma inversão radical da ordem política e da hierarquia familiar.
Com a invasão da Acrópole, o centro do poder funde-se com os objetos do desejo. A reconciliação final implica mais do que a volta à normalidade sexual, mas uma tentativa de reconciliação política num plano superior ao impasse que a cidade vivia.
A peça é uma oportunidade para admirar uma atriz muito engraçada. É Roseli Silva, no papel da hilariante Cleonice. Ela tem uma comicidade natural, uma empatia irresistível, que lembra Olívia Palito e Regina Casé, em olhos dignos de atrizes cômicas de cinema mudo. Dela, qualquer gesto, mínimo que seja, leva ao riso agradecido da platéia.
A montagem de Ulysses Cruz para "Anjo Negro", de Nélson Rodrigues, cuja temporada encerrou-se recentemente em São Paulo, apresenta uma característica digna de relevo: o encenador parece ter procurado evitar restringir a peça a uma órbita cultural específica, numa tentativa-limite de escape dos constrangimentos culturais do texto original.
Ulysses Cruz vai longe. Tenta fugir dos próprios condicionantes da órbita cultural atual. Sua montagem é nua, sem vestígios daquilo que se convencionou chamar o subúrbio carioca, tão familiar às peças de Rodrigues. É como se o diretor quisesse buscar um drama rodrigueano puro, universal, perene.
Peça mítica, "Anjo Negro" se presta a um tratamento ritualístico. O negro Ismael, herói maldito por ter renegado a própria cor, é casado com uma branca que mantém presa em casa. Ele encara cor como maldição. Tem complexo dela. Quer se purificar.
Quando menino, Ismael cegara o irmão de criação branco. Faz a mesma coisa com a única filha, adotiva e branca. A mulher matara, em metódica sequência, três outros filhos legítimos negros, todos afogados num tanque.
Os personagens de "Anjo Negro" parecem calcados numa espécie de poder especial adquirido, submetidos cada um a seu estigma. A cegueira é um desses estigmas. A cor da pele também. Relações incestuosas idem. Aqueles que possuem esta condição não têm outro caminho senão o de se submeterem à fatalidade: "Nem a morte seria uma fuga", diz a branca Virgínia sobre a transpiração do negro Ismael que a impregna.
A peça já começa com o relato da história das mortes das crianças negras. A rotina de uma série incontrolável de eventos amaldiçoa a casa.
Nélson Rodrigues enfrenta a questão do racismo disfarçado. Foge de uma abordagem generalizadora. Prefere o preconceito impregnado em cada um, o que se volta contra a pessoa. Chega ao ultraje de centrar a ação sobre o racismo de um negro.
Virgínia, interpretada com perfeição por Cristiana Guinle, tem por seu marido Ismael, negro e médico, sentimentos de ódio extremo, mesclados com uma sensualidade que chega à histeria.
O coro de mulheres negras descalças fornece um ponto de observação distanciado da trama. Chega a dar arrepios a forma como rezam, antecipando presságios que soam como se fossem oriundos do início dos tempos.
"Anjo Negro" é uma peça de oposições radicais. Todos sofrem muito e parecem obter enorme prazer da condição que os enclausura, cega ou sufoca. São como animais criados em jaulas. Chegam a acreditar que o mundo inteiro se parece com elas. A obra de Nélson Rodrigues persegue os abscessos da alma. O "Anjo Negro" de Ulysses Cruz os expõe com crueza.

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