São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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Agostinho da Silva, um descobridor de mundos

MARCELO CARVALHO FERRAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Fim de março de 93. Chego de manhã a Lisboa, e vou direto ao encontro do Professor Agostinho da Silva. Juntos, seguiríamos para a residência do embaixador do Brasil, para um almoço com a presença de Zélia e Jorge Amado, do historiador Francisco Iglésias e de nossos anfitriões, o embaixador José Aparecido e sua esposa, d. Leonor.
Tínhamos uma importante missão: levar adiante um projeto acalentado por muitos, bastante ambicioso, e de fundamental importância para o Brasil dos nossos dias: uma série de cinco programas de televisão, intitulada "A Descoberta do Mundo". O olho e o coração daquele ilustre e genial professor Agostinho da Silva –velhinho que mais parecia um moleque, quando brincava com o mundo– guiariam essa nossa viagem.
O embaixador dá todo apoio e, no dia seguinte, parte para a África, já em cruzada pela criação da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa. Leva consigo muitos dos conselhos geopolíticos do nosso professor.
Neste mesmo dia, vamos à Embaixada. Lá, o professor Agostinho dá um verdadeiro show de política luso-brasileiro-africana. Fala do passado do mundo e do futuro, fala de religião, da criatividade como fonte única capaz de sustentar este globo em pé, fala do deslocamento num futuro próximo do atual eixo EUA/Europa para o eixo Brasil/China.
A China a cuidar do concreto (já deu mais do que provas de capacidade, alimentando um bilhão e duzentos milhões de pessoas), e o Brasil, portador da alegria e da raça do futuro (já misturada), a cuidar do sonho.
Fala da CEE como um departamento de secos e molhados da Europa, uma espécie de liga das nações artificialmente montada que nunca funcionará se não se firmar verdadeiramente na união dos diferentes povos e de suas culturas.
Fala do culto do Espírito Santo, que resume com muita sabedoria e simplicidade a essência de seu pensamento libertário e de suas palavras de ordem: "uma criança é coroada imperador do Mundo, vai à cadeia e solta todos os presos (inclusive os guardas, coitados) e, em seguida, celebra a vida com um banquete público e gratuito, dividindo a comida em festa".
Esse culto herege, reprimido na inquisição e banido da Península Ibérica, mantém-se vivo ainda hoje nos Açores e no Brasil. Traz o modelo de um mundo onde todas as raças e culturas podem irromper num tempo verdadeiramente humano.
Visualizávamos já os programas da "Descoberta do Mundo", que deveriam resgatar um sentimento tão escasso hoje em dia entre os brasileiros, o orgulho. Orgulho pela raça que somos, pela cultura que representamos e pela língua que falamos.
Os programas, que teriam como espinha dorsal o pensamento do professor Agostinho da Silva, e seriam realizados por Roberto Pinho e Isa Grinspum Ferraz, deveriam contar a viagem da língua portuguesa e, mais que da língua, do espírito português pelo mundo.
Com as dificuldades naturais e não-naturais de todos os projetos, o tempo passou e, em outubro, professor Agostinho sofreu um derrame cerebral que acabaria o levando no último 3 de abril.
Nosso projeto continua vivo. Devemos fazê-lo agora, mais do que nunca e a qualquer custo, com as idéias do professor. É preciso dividir, como na boda do Culto ao Divino, o mundo fascinante e inusitado projetado por este homem, herdeiro direto de Camões, Vieira e Pessoa. É preciso que todos saibam que nos 25 anos que aqui viveu (44 a 69), ele ajudou a criar universidades (Santa Catarina, Paraíba, Brasília), o centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia, base sólida que sustentou o estabelecimento das relações com a África, e inúmeros movimentos de marés e contra-marés culturais civilizatórias.
É preciso que se conheça a escola idealizada pelo professor. Não a que limita e aprisiona as crianças, mas a que as deixa serem livres. "É preciso ser poeta à solta"... O professor Agostinho foi tudo isso que projetou e sonhou. E o foi no dia-a-dia da vida, nos mínimos atos e nos menores gestos. Exercitou a liberdade, o respeito ao outro e a generosidade.
Muitos brasileiros o conheceram e poderão contar muito mais e melhor que eu sobre este professor descobridor do mundo. Seria a hora destes brasileiros começarem a abrir seus "baús"; seria a hora de serem lançados aqui seus livros e artigos, para que as novas gerações não sejam privadas deste privilégio que não pode ser de poucos, e que tanta utilidade pode ter neste momento da vida nacional.
Onde estão nossos editores?

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