São Paulo, segunda-feira, 5 de dezembro de 1994
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Uma CPI maliciosa

LUÍS NASSIF
UMA CPI MALICIOSA

Nos seus estertores, o velho modelo de saúde brasileiro consistiu em uma suruba fisiológica, na qual políticos indicavam dirigentes do ex-Inamps encarregados de distribuir e fiscalizar verbas destinadas a hospitais dos próprios políticos e de seus respectivos aliados.
Por conta desses abusos, em 1991 foi proposta uma CPI para investigar o setor. Durante três anos os trabalhos foram obstados por uma bancada de deputados, donos de hospital, tendo como pontas-de-lança o presidente da Câmara, Inocêncio de Oliveira, e o deputado goiano Ronaldo Caiado.
Mas o relatório da CPI, entregue a um parlamentar despreparado e embevecido por seus 15 minutos de glória –Jackson Pereira (PSDB-CE)–, levanta distorções acumuladas ao longo de anos, lista série de golpes típicos do velho modelo, para concluir que a morte do Inamps foi a responsável pelos vícios que ele acumulou em vida. Tenha-se a santa paciência!
Apresenta números bombásticos. Diz que a falta de fiscalização levou ao desvio de US$ 1,6 bilhão por ano, quando relatório menciona possibilidades de desvios, se não houverem controles adequados. É uma expectativa de desfalque, estimada por fonte ignorada, sabe-se lá com base em que critérios. Mas pouco importa. Nesse país de botocudos, qualquer leviandade apresentada em formato numérico vira verdade absoluta.

Código 7
Na página 66, informa que levantamento feito por esta CPI relacionou 453 profissionais de saúde em todo o país, que receberam vencimentos acima da média. Como se fosse possível a uma CPI, sem quadros especializados, levantar esse número em menos de cinco meses. Esconde-se maliciosamente a fonte das informações –o próprio Ministério da Saúde– para apresentar falsamente um quadro descontrolado.
Escondido no meio do relatório, está a informação de que os principais problemas do código 7 (uma das maiores fontes de desvio) relacionam-se a casos de auditores do SNA (Sistema Nacional de Auditoria) e secretarias estaduais que, como médicos, prestam serviços em hospitais conveniados e faturam com base no código 7, sujeitos à sua própria fiscalização. Ou seja, apresenta-se como culpa da descentralização golpes só possíveis dentro do casamento promíscuo entre burocracia federal e donos de hospital.
Dois mestres
Nas conclusões, define-se claramente a qual jogo de interesses o relatório do deputado Jackson Pereira serve.
O primeiro óbolo é pago à burocracia do ex-Inamps. Sugere-se a recriação do Sistema Nacional de Auditoria, maior e mais oneroso que o extinto Inamps. Este tinha 1.100 funcionários, entre auditores e aqueles incumbidos de administrar hospitais públicos. O sugerido terá 1.500 auditores apenas para a fiscalização, a maior parte aproveitada do ex-Inamps, beneficiados por sistemas de gratificação de até 200%.
O segundo óbolo é pago aos hospitais privados e aos parlamentares da área. Os hospitais privados deverão sofrer uma auditoria federal. Caso o capital privado não tenha recursos para atingir os padrões mínimos desejados, o poder público poderá financiar, dentro de limites estabelecidos. Adivinhe quem decide destino de verba pública.
Não houve nenhum pudor do relator Pereira, e de seu grupo, de considerar a situação de calamidade dos hospitais públicos e a falta de verbas para o atendimento médico ou a importância social de libertar a saúde da política.
O que importa é preservar a mediação política no uso das verbas públicas.

Coincidências
Pode ser mera coincidência, mas do relatório final da CPI não consta o sub-relatório de Pernambuco, Estado onde o deputado Inocêncio tem seu hospital.

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