São Paulo, quarta-feira, 7 de dezembro de 1994
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Empate dos inocentes

SAULO RAMOS

No caso do senador Humberto Lucena, o Supremo Tribunal Federal está inocente, tanto quanto o presidente do Congresso Nacional. Apesar do resultado registrar votos em dois sentidos, houve, na verdade, um empate de inocências. A palpitaria, que se seguiu ao julgamento do recurso extraordinário, deu à decisão do augusto tribunal a interpretação errada, considerando-a uma espécie de confirmação da pena imposta pela instância inferior, esta, sim, autora de um erro judiciário espetacular e espetaculoso.
Na processualística brasileira, o recurso extraordinário, depois de 1988, ficou mais estreito do que era antes. Em matéria eleitoral, o estreitamento é total, porque a cidadã declara serem irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior Eleitoral, salvo as que contrariem a Constituição (art. 121, parágrafo 1º). Para contrariar a Carta da República, a inconstitucionalidade, segundo a jurisprudência do STF, deve ser direta e frontal. Inconstitucionalidade indireta não merece a guarda do augusto.
Isto quer dizer o seguinte: ao Supremo Tribunal Federal foi confiada a guarda da Constituição (art. 102), somente da Constituição, mas não a do direito do cidadão brasileiro, que sofre lesão em suas garantias fundamentais por interpretação errônea de fatos contra ele irrogados nos tribunais inferiores, ou quando a inconstitucionalidade resultar de aplicação de leis infraconstitucionais, porque, em ambas as hipóteses, será indireta.
Vou dar logo um exemplo para evitar o tédio de quem conseguiu ler este artigo até aqui: somente a pessoa casada pode ser processada e condenada por adultério. Se os tribunais inferiores condenarem, por adultério, uma pessoa solteira, o Supremo Tribunal Federal não pode tomar conhecimento do erro, mesmo se a vítima invocar o devido processo legal, o amplo direito de defesa, a falta de certidão do inexistente casamento, porque tudo isso seria reexame da prova, haveria a proibida valoração dos fatos, somente possível nas instâncias ordinárias. Pode, a pessoa solteira, espernear a vontade. Fica sendo adúltera pelo resto da vida, porque o direito lesado não configura inconstitucionalidade direta ao texto da cidadã. A inconstitucionalidade é indireta.
Assim ocorreu com o senador Humberto Lucena. Usou, como quase todos os senadores desta República, a Gráfica do Senado para imprimir e distribuir calendários, no ano de 1993, quando não era candidato. E o tal do calendário continha mensagem de otimismo para o ano próximo, dirigida aos brasileiros e não, apenas, aos paraibanos. Nenhuma palavra sobre eleições.
Todos sabem que a lei eleitoral pune abusos do poder econômico e do poder de autoridade quando praticados em favor de candidato, sendo claro, intuitivo, simples, que é preciso haver candidatura e eleições para a configuração do delito, tanto como é preciso haver casamento para a imputação de adultério.
O senador tornou-se candidato à reeleição no ano seguinte, escolhido pelo seu partido em março e registrado em junho. Logo não era candidato quando distribuiu o calendário.
Apesar de absolvido no Tribunal Regional do Estado, mais perto dos fatos e senhor de melhores condições para avaliar a influência deles sobre a normalidade do pleito futuro, foi o senador condenado no TSE, que acabou por entender ter havido propaganda eleitoral mesmo antes do acusado ser candidato, porque veio a sê-lo depois.
Voltando à história do adultério, deu-se a condenação porque a pessoa solteira, que andou namorando antes de casar-se, contraiu matrimônio depois do passo em falso, que, cá entre nós, não seria tão em falso para um celibatário, mesmo se a consequência fosse aquela história de que a moça ficou grávida um pouco só.
No Supremo Tribunal Federal, pela via do recurso extraordinário, tais circunstâncias não podem ser apreciadas, daí o não conhecimento do recurso, profundamente lamentado no voto do ministro Francisco Rezek ao declarar errada, no seu modo de ver, a decisão do TSE e lamentar, angustiadamente, não poder corrigi-la por estar, como juiz, preso à técnica recursal imposta pela jurisprudência da casa.
É verdade que os ministros Ilmar Galvão e Marco Aurélio tentaram acordar a casa para a gravidade do caso, procurando fazer com que a jurisprudência desse um passo à frente. Mas ficaram vencidos. Alguns filósofos entendem que a eternidade (ou os 40 séculos) das pirâmides do Egito deve-se ao fato de que elas são estáticas. Teriam ruído se tentassem avançar.
O ministro Marco Aurélio lutou bravamente pelo conhecimento do recurso a partir da evidência de que houvera lesão ao direito constitucional da coisa julgada. Este jovem magistrado, em que pese sua inexperiência quando começou naquele augusto Tribunal, inegavelmente tem o raciocínio aberto e, a cada dia mais estudioso e culto, demonstra louvável tendência a batalhar pela evolução e modernização das pirâmides, ao contrário de outro ministro que, mais antigo na casa e muito parecido com o faraó Ramsés, ainda usa a palavra "contumélia", não se sabe em qual dos sentidos, para agredir os advogados das partes.
Agora, parte do Congresso Nacional quer reagir contra o Supremo. Não seria justo. Tem, isto sim, de reagir em favor de Humberto Lucena. Todos estão de acordo num ponto: houve erro judiciário. Impõe-se, à autoridade e soberania do Congresso Nacional, usando das prerrogativas, que a Constituição lhe confere no art. 48, inciso VIII, a imediata votação de uma lei de anistia, que beneficie, não apenas o senador Humberto Lucena, mas todos que tenham sido processados pelos mesmos fatos antes de serem candidatos.
Assim o Parlamento brasileiro dará uma demonstração de respeito aos candidatos eleitos pelo povo, o verdadeiro e único juiz do político (Lucena teve mais de meio milhão de votos), e um recado claro às instâncias ordinárias do Judiciário: o Congresso Nacional tem meios e modos, sabendo usá-los quando preciso, de corrigir os erros praticados em nome da Justiça e que, na verdade, ocultam, não os olhos, mas interesses partidários, sem votos populares, com pretensão a alterar, no tapetão, resultados eleitorais legítimos.
Antes que a palpitaria cometa outro engano, causado por informação errada de meu amigo Josias de Souza, devo deixar registrado que não fui advogado de Lucena neste caso.

JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS, 62, é advogado em São Paulo. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).

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