São Paulo, quarta-feira, 7 de dezembro de 1994
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"Res publica" ou "cosa nostra"?

ROBERTO ROMANO

Anistia é palavra sagrada. Ela garante a tolerância mútua dos cidadãos e atenua os rigores da legalidade estrita. A sua prática é a alma da justiça, ela humaniza uma lei correta, mas que deve atingir cada particular com suas especificidades. No étimo da nossa língua jurídica, "anistia" significa perdão e esquecimento. É sugestiva a frase do "Léxico Grego Latino" de Liddel & Scott: "forgive and forget".
Há um esquecimento saudável garantindo a continuação da aventura política comum, como por exemplo nas revoluções, com mortes de ambos os lados. A vingança conduz ao desaparecimento cruel de todos os envolvidos, causando a catástrofe absoluta. Uma anistia impõe as condições para o recomeço da sociedade. Todos desafiaram a lei comum, dos deuses e dos homens. Todos podem reparar, coletivamente, suas faltas.
Os vencedores ocasionais sabem que não podem destruir todos os vencidos, porque isto não deixa ninguém para mandar ou obedecer. Desde Trasíbulo (403 A.C.) até o preceito romano que implica "restitutio in integrum", a reabilitação global fundamenta a estabilidade política, a reprodução do Estado.
A França conheceu infindáveis anistias e quebras de suas promessas. O Edito de Nantes "foi parcialmente uma anistia, e durante todo o século 19 tivemos uma fieira de anistias, desde o decreto imperial de Napoleão de 1802 às sucessivas anistias de 1881, posteriores aos distúrbios civis de 1871 e à Comuna de Paris" (W.Y. Elliot). É claro, arrazoa Elliot, que a anistia é efetiva e serve como proteção legal em Estados que obedecem leis garantidas por respeitadas cortes de justiça, "ou em monarquias absolutas e ditaduras onde o dirigente possui comprovada boa-fé".
Se não há respeito pelas togas, toda e qualquer "anistia" é pura mentira, querendo perdoar unilateralmente classes, grupos, indivíduos. Deste modo, o "perdão" a priori para um indivíduo apenas, quando este mesmo indivíduo foi condenado num pretório funcionando em pleno Estado de Direito, com todas as garantias de defesa e de publicidade, não pode ser designado como anistia, mas como violento arbítrio de quem o comete, mesmo que o sujeito desta ação seja o Parlamento.
Se o tribunal é ignorado e o Congresso usurpa suas funções de modo sub-reptício, desaparece a esperança de anistia real para todos, quando esta se fizer necessária. O próprio instituto da anistia é desmoralizado, abrindo-se imprudentemente a porta para futuros conflitos insolúveis.
Numa Federação que já conheceu revoltas separatistas –a última data de 1932– e que enfrenta ódios latentes de norte a sul, esta imprudência pode custar muito caro em termos de vidas humanas. Quem não conhece a história brasileira ignora também a importância da anistia, da força física e dos esforços diplomáticos, na confecção da integridade nacional.
Anistia também conota amnésia, uma doença que ataca os aglomerados humanos cujos hábitos tornaram-se automáticos. Neles, os atentados ao direito são vistos como "naturais" e "corretos". Quando certo governador brasileiro, em data recente, atirou na boca de um adversário, a maior autoridade do Parlamento nacional veio a público para louvar a "coragem" do sujeito. Esta mesma autoridade, hoje, através de seus pares, desafia o Supremo Tribunal Federal com manobras legais para garantir-se no mando. O governador recebeu as bênçãos dos deputados de sua Assembléia Legislativa. Estas anistias perversas são o instrumento preferido dos tiranos brasileiros. Elas devem ser combatidas com todas as armas, através da imprensa livre, dos movimentos sociais, das escolas etc.
A estratégia que se projeta no Parlamento, para salvar o senador Humberto Lucena, é a última violência de uma legislatura que sistematicamente voltou as costas para os eleitores. Com a anistia ao senador Lucena ela rasga a lei, implode o respeito pelos tribunais –no caso, o mais eminente da República– e incentiva todos os cidadãos a imitá-la.
Esperemos que os representantes honestos barrem esse crime, para que reste alguma democracia em nossa terra. Caso oposto, estará aberta a porta para o "monarca absolutista ou ditador de boa vontade" indicados por Elliot. Como estes só existem nos contos de fadas e não integram a vida real, é preciso salvar o Estado de Direito. Neste, ninguém pode ser impune. Para atingirmos este fim democrático, basta que os deputados não mais confundam "res publica" com "cosa costra".

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