São Paulo, terça-feira, 13 de dezembro de 1994
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Um julgamento histórico

HÉLIO BICUDO

O julgamento do ex-presidente Fernando Collor, pela mais alta corte de Justiça do país, sugere comentários, não importa o seu resultado, a propósito de alguns aspectos abordados pelos meios de comunicação; de como se estruturou a acusação; e, por fim, os argumentos desfilados por ministros julgadores, na interpretação da prova e do tipo penal em causa.
Antes, porém, desfaça-se o equívoco de que o julgamento por crimes de responsabilidade, levado a efeito pelo Senado Federal, apontaria para uma condenação inevitável no processo de corrupção passiva, na forma de denúncia oferecida pelo procurador-geral da República.
A Câmara dos Deputados autorizou o processo por violações do texto constitucional, que define os crimes de responsabilidade, sobretudo a condenação, quando a Câmara Alta entendeu configurada a figura da improbidade administrativa, demonstrada pelo enriquecimento ilícito propiciado pelo recebimento, direto ou indireto, de vultuosas importâncias em dinheiro ou em espécie. Condenação política, porque adstrita ao afastamento do presidente corrupto e à proibição para o exercício de qualquer função pública pelo prazo de oito anos.
Entendendo que, além disso, esses fatos que embasavam a condenação política, poderiam integrar crimes comuns, o processo foi encaminhado ao Ministério Público, cujo chefe ofereceu denúncia contra o presidente, já então cassado, incriminando-o, com seus comparsas, pelo crime do artigo 317, do Código Penal, que descreve o delito de corrupção passiva. Para tanto, promoveu diligências e considerou os elementos que o Congresso Nacional oferecera.
O julgamento vem de ser feito cerca de dois anos depois, lapso de tempo durante o qual se arrastou o processo.
Nos dias que antecederam à decisão tomada, mediante "insights" nos meios de comunicação, se deu início à construção de um panorama favorável ao réu, e, por outro lado, pejorativo à atuação do procurador-geral da República.
Quando se falava no acusado, não era mais o "improbus administrator" reconhecido por todos, mas o homem corajoso que buscara a internacionalização da nossa economia, dando os primeiros passos na política que ora se ensaia. Praticara alguns senões que, entretanto, não desfiguravam a sua postura de estadista...
Ao mesmo tempo, mediante uma manobra que já obtivera êxito em outros casos, como aconteceu com o arquivamento do processo de cassação do mandato do deputado Ricardo Fiuza, pela Câmara dos Deputados, procurou-se, também desta feita, inverter as posições transformando o acusado em vítima e o acusador em réu, e o que é mais lamentável, com a ajuda do próprio relator e instrutor do processo, ministro Ilmar Galvão, nomeado pelo réu, considerando-se o chefe do Ministério Público, por dissidioso, comprometido com as conclusões absolutórias colhidas.
Ora, a interpretação do que seja a prova criminal, constante de respeitáveis votos é a negação do que até agora se considera o fim do processo penal que é a verdade real, buscada pelo juiz mediante o exercício de seu livre convencimento.
Começou-se pela desqualificação de provas já admitidas na instrução e que teriam sido obtidas ao arrepio da lei. Mas considerou-se que as suas repercussões seriam aceitáveis.
A prova, sabe-se, é justamente a atividade desenvolvida no curso da ação, no sentido de convencer de que a infração penal ocorreu efetivamente e que dela é autor quem a denúncia acusa. É, aliás, a lição de Sabatini, que a considera o conjunto dos meios e métodos pelos quais é possível exprimir o julgamento sobre a verdade de uma acusação.
A avaliação da prova consiste no balanço crítico feito pelo julgador, do resultado do exame probatório e no seu consequente livre convencimento sobre a concludência da própria prova aos fins processuais. O livre convencimento é a certeza moral quanto à prática do crime e de sua autoria.
O processo é, assim, a busca da verdade e não se compadece com nefelibatismos. Apurou-se em todo esse processo que o réu recebeu quantias consideráveis, direta ou indiretamente, no exercício da função pública e tanto basta para que se submeta à sanção do artigo 317, do Código Penal.
A desclassificação de provas é uma inovação e perigosa inovação, porque se o conjunto probatório indica o crime e seu autor, não se pode esconder a verdade com subterfúgios formais. O juiz sabe que A matou B por forma cruel, mas não o condena porque ocorreram irregularidades na apuração dos fatos... E isso é inadmissível na tradição do direito.
No caso, além de provas diretas "desclassificadas", temos indícios, e indício, no sistema processual brasileiro, é prova como outra qualquer, porque entre elas não há hierarquia, e, portanto, capaz, por si só, de levar a condenação do réu. Se o Supremo considerou válidas o que chamou de provas derivadas, outra conclusão não poderia ser adotada senão a condenatória.
Por outro lado, no que respeita à tipificação do crime em questão, não há nada, na doutrina ou na jurisprudência consolidada, que imponha a prática de ato de ofício como elemento fundamental a configuração do tipo do artigo 317, do Código Penal. Querer subordinar a integração delitiva a um encontro de vontades é desconhecer que o Código Penal considera a corrupção passiva dentre os crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral e a corrupção ativa dentre os crimes praticados por particular contra a mesma administração.
Nelson Hungria assevera a esse respeito que não é necessário que o agente sequer se ache no exercício da função. Diz a lei: "Ainda que fora da função ou antes de assumi-la." O que é indispensável é que a recompensa seja recebida ou solicitada "em razão da função".
Esse recebimento aflorou desde o processo de "impeachment". Foi direto, no caso da "Elba"; ou indireto, mediante contas-fantasmas movimentadas pelos comparsas. Que mais para que se tipifique a corrupção?
Em remate, o desfecho desse processo é daqueles que se lhe seguirem, inclusive os que foram instaurados em decorrência das investigações e conclusões da CPI do Orçamento, irá dizer a quantas anda o Judiciário brasileiro e o povo aí está para formar seu juízo de credibilidade sobre as suas instituições.

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