São Paulo, terça-feira, 13 de dezembro de 1994
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De um cidadão ao presidente

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Anaxágoras de Clazômenas é tido como o primeiro fundador de escola filosófica em Atenas, onde viveu e foi mestre –depois protegido– de Péricles. Enriqueceu a teoria do movimento de Heráclito, a que atribuía apenas uma visão de processo, vinculando-a a uma atividade intelegível, em que a alma e a essência (realidades que, para ele, parecem ser integradas) estão projetadas para um fim, que é o bem em si mesmo.
Embora o estudo do pensamento de Anaxágoras, a partir dos fragmentos que restaram de sua obra, tenha sido feito pelos historiadores da filosofia ou por filósofos como Hegel, Nietzsche, Bertrand Russell e Emile Bréhier, o importante é que a percepção de que a essência, a atividade e os fins constituem o bem fundamental do ser humano e dos seres em geral, e que o homem busca durante toda a sua vida a realização de um ideal. Jehring, no livro "A Finalidade do Direito", não se afasta de tal concepção.
Tais rápidas e perfunctórias considerações eu as faço às vésperas da definição das diretrizes do novo governo para a nação. O que fazer para atingir este bem maior, desejado pela sociedade, a partir da atividade essencial dos políticos, que a representarão nos próximos quatro anos?
De início, parece-me que deva o presidente da República, sem desconhecer ou desconsiderar as alianças que o levaram ao poder, procurar, entre os vocacionados para a política –nem todos os que o acompanham têm vocação política–, aqueles que demonstraram competência no curso dos anos, espírito de equipe, afinidade com os objetivos presidenciais, sobre estarem vacinados contra a síndrome do holofote.
A competência é fundamental. Quem quer o poder pelo poder, sem estar preparado para desafios cada vez maiores em um mundo de mais em mais universal e complicado, deve ser excluído. Em cada área, deveria ser escolhido alguém que pudesse fazer do fim um bem na sua atividade essencial, como vislumbrava, no século 5 antes de Cristo, Anaxágoras, e que esteja capacitado para atingi-lo.
O espírito de equipe é também essencial. Muitos buscam o poder pelo poder e, uma vez no poder, fazem dele um jogo pessoal e não de equipe. Escalados para jogar em um esporte coletivo, pensam estar num esporte individual. Quem não tem espírito de equipe não pode ser útil, mesmo que competente.
A terceira condição fundamental é, sem dúvida, a afinidade com o presidente. Se já tivessemos uma administração pública com a valorização da burocracia profissionalizada, o presidente só poderia escolher para funções técnicas funcionários de carreira, como ocorre na maior parte dos países civilizados. E, dentre aqueles servidores mais graduados e competentes, poderia convocar os que se afinassem com suas idéias e planos de governo.
Por fim, o "vírus" da síndrome do holofote deve ser combatido em qualquer escolha. Muitos colaboradores de governos não resistem a um holofote ou a um microfone. Até o procuram. Quantas vezes, na recente vida do país, homens públicos de expressão prejudicaram os planos governamentais por excesso de inconfidências à mídia. Numa equipe coesa, deve falar quem tem o comando ou quem o comando autorizar.
Montada uma equipe de nível, com pessoas vocacionadas para a política e para o poder, parece-me essencial que haja o contato permanente dos participantes do governo com a sociedade organizada e com intelectuais ou brasileiros de nível, que, sem vocação política, poderão contribuir com idéias descomprometidas para correções ou aperfeiçoamentos dos planos oficiais.
Os últimos anos têm demonstrado que muitos que rejeitariam qualquer participação no governo poderiam colaborar patrioticamente com o país, apresentando sugestões a serem meditadas pelos que governam. A crítica, as sinalizações e o apoio dessas pessoas ou instituições renomadas são formas de colaboração, de que um governo despreconceituoso não pode prescindir.
E, "the last, but not the least", deveria o futuro governo ter a percepção de que é passageiro, enquanto a sociedade é duradoura. Se não permanecer continuamente sintonizado com as aspirações legítimas dos representados, correrá o risco de incidir na condenação de Montesquieu, de que o poder deve controlar o poder, porque o homem, quando o detém, não é confiável.
Nenhum governo é perpétuo. Por isso governo sábio é aquele que passa para a história administrando seu povo, na busca de um destino maior. E sabe evitar a tentação de experiências ideológicas utópicas, na esperança de eternizá-las.
É útil para todos os governos do mundo a lição do imperador indiano Akbar, que, em 1571, construiu sua capital (Fatehpur Sikri) e colocou à entrada da cidade, na "Porta do Triunfo", a seguinte inscrição: "O mundo é uma ponte. Atravesse-a, mas não pense em construir nada sobre ela".

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