São Paulo, sexta-feira, 23 de dezembro de 1994 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
Francês mostra deslumbre por Frida Kahlo
DANIEL PIZA
Mas a esperteza às vezes é traidora. O que Le Clézio –ele também cultuado, considerado em pesquisa recente da revista "Lire" o melhor de seu país–, com estilo hiperbólico e feminismo de butique, tenta fazer em seu livro? Provar que Frida era grande mulher, grande artista e amava profundamente Rivera –que jamais soube compreender isso. O que acaba por mostrar é a balança pesando para o outro prato. Rivera tinha grandeza. Frida, não. E isso nada tem a ver com posições ideológicas (Rivera era comunista; Frida, apolítica), éticas (Rivera não era fiel à mulher, aceitava encomendas governamentais enquanto se proclamava revolucionário) ou comportamentais (Rivera era um bonachão, um Falstaff; Frida, uma ranheta). Tem a ver com algo mais. Curiosidade e generosidade, por exemplo; em ambas, Rivera fazia sombra a Frida. Vários fatos narrados por Le Clézio demonstram. Suas amizades, em especial. Uma das maiores foi com o pintor italiano Amedeo Modigliani (1884-1920), com quem dividiu apartamento em Paris nos anos 20. Modigliani lhe fez o retrato, que pertence ao acervo do Masp, e o Rivera de Le Clézio está todo nessa tela: excessivo, intenso, grande. Outra amizade foi com Leon Trotski, no período em que o revolucionário russo se exilou no México. Rivera, que o admirava, lhe deu guarda e ajuda. Trotski lhe faltou numa votação, em 1938, que decidiu afastar Rivera da Internacional Socialista. Também, ao que parece, o traiu com Frida. Ainda assim, Rivera continuou seu amigo e, quando Trotski foi assassinado com uma picareta, verteu lágrimas salgadas. Rivera não temia o novo. Enfrentava dificuldades financeiras, inaugurava fases em sua pintura, viajava e fazia amigos, escrevia tratados sobre arte abstrata e o papel dela na América, lançava movimentos estéticos, participava de reuniões políticas –tudo com força de vontade hercúlea. Parecia ver o mundo como uma aventura interminável, um vasto mural de acontecimentos decisivos –como os que pintava. E Frida? Frida, a mulher idolatrada por Madonna (a cantora popular, não a Virgem), ficava remoendo seu ódio aos amigos intelectuais de Rivera, que chamava de "podres", às metrópoles como Nova York e Paris, à imprevisibilidade de seu marido etc. No diário, anotava adolescências como: "Diego, minha mãe/ Diego, meu pai/ Diego, meu filho/ Diego, eu mesma/ Diego, universo/ Diversidade na unidade/ Mas por que digo Meu Diego?/ Jamais será meu. Pertence apenas a si próprio". Amélia ficaria tocada. Essa frase, "Pertence apenas a si próprio", trai outra diferença existente entre Rivera e Frida, além da grandeza de espírito: a grandeza de talento. Rivera foi o maior artista moderno mexicano. Frida não suportava que Rivera tivesse seu mundo pessoal, intransferível e bem mais criativo que o dela. Sofreu muito na vida e expressou artisticamente esse sofrimento, mas certamente não foi a primeira. Era, em suma, uma jeca com personalidade, que pintava com personalidade e jequice. Com tantas mulheres admiráveis neste século –Simone de Beauvoir, Hannah Arendt, Mary McCarthy–, por que personalidades como Le Clézio encasquetam com Frida Kahlo? Difícil responder, mas, seja como for, sua lenda ultrapassa a de Rivera hoje. Um dos tópicos dela, por sinal, é a homossexualidade. Frida teria tido, entre outros, caso com a pintora americana Georgia O'Keefe, também excessivamente badalada. Ninguém confirma, mas as lendas se imprimem. Livro: Diego e Frida Autor: J.M.G. Le Clézio Tradutores: Lúcia Barrocas e Silva e Paulo Mugayar Kuhl Quanto: R$ 25 Texto Anterior: Tanner trata amor com classe Próximo Texto: O líder valoriza a coragem de ousar Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |