São Paulo, sexta-feira, 23 de dezembro de 1994
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Cestas anunciavam geografias misteriosas

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ai, quantos natais, tantos! No princípio eram natais ateus, anunciados não pelo anjo, mas pelas cestas de brinde. Dentro da palha brilhavam outros mundos, o luxo, geografias misteriosas. Mínimas "terrines de foie", pequenas alcachofras em azeite, damascos, avelãs, amêndoas, castanhas de Portugal. Mostardas inglesas que subiam ao nariz, cerejas preservadas em espíritos fortes, minúsculas mandarinas em compotas.
Todo esse mistério, surpresa, alumbramento conviviam com o peru vivo que chegava, de presente, nas vésperas da ceia. Às vezes era entregue à noite, em caminhão barulhento, de entregas atrasadas. Recebedor e ave ficavam lá, abraçados, comovidos, corações disparados no escuro, num susto só. O bicho zanzava dias e dias pelo quintal, ressabiado. Quando começava a se acostumar, era a hora do porre.
A cozinheira abria-lhe o bico e despejava duas colheres de pinga goela abaixo. Só isso bastava e ele amolecia, largava os músculos e derreava no chão. Quase sempre junto com a cozinheira. E depois da matança ia assar na padaria com um amarrilho na perna com o nome da família. Passava a noite no calor manso do forno já apagado. Voltava coradíssimo e cheiroso, mas diminuído, encolhido, e sempre corriam suspeitas de que fora trocado pelo peru da vizinha.
Meu pai era um natalino daqueles inveterados, que começava a comprar e esconder presentes em junho. Dona Anunciação, uma querida amiga portuguesa, viúva, passava o Natal conosco e todos os anos ganhava um livro de sacanagem, que escondia depressa entre saudáveis gargalhadas. Naquele ano, passou metade da ceia revirando os olhos e prelibando a leitura pornô. "Pois, pois, 'Histórias do Vovô Vicente'!" A tempo, descobriu-se que o exagerado Papai Noel confundira o livro de alguma criança com o da amiga.
Em meados dos anos 50, a tradição de comidas natalinas bem brasileiras foi rompida. Havia mudanças no ar e o pernil e as aves guardaram suas farofas e apareceram guarnecidos com compotas de figos, pêssegos e abacaxis.
Ah, como sabiam bem aquelas comidas, aqueles cheiros, misturados ao encanto infantil de estar vivo, à inconsciência do perigo de estar vivo. Pensávamos ainda que o único a morrer, ad eternum, seria o peru.
Tentamos natais religiosos para os filhos. Armamos com eles lapinhas, montamos presépios vivos. Quem seria Nossa Senhora? Quem seria a lavadeira? E tudo se acabou no dia em que São José, esperando a meia-noite na copa, com fome, impaciente e encalorado, desceu o bordão florido nas implicantes Marias.
Diminuímos o grau de religiosidade e no ano seguinte resolvemos passar, antes da ceia, um pequeno Jesus de "biscuit", numa salva de prata, para que fosse beijado por todos. Uma das convidadas, Ana Maria Lobo, entretida com uns americanos bonitões do Ponto 4, declinou, distraidíssima. "Não, obrigada, estou satisfeita." Pensou que fosse um último canapé.
E, por essas e por outras, por Cristo e com Cristo, poupai-nos os natais adultos, devolvei-nos por um dia que seja o olhar de criança, amém.

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