São Paulo, sábado, 24 de dezembro de 1994
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As pupilas e os putos

JOSUÉ MACHADO

Um garoto do segundo ano colegial tirou ótima nota no trabalho sobre o livro "As pupilas do Senhor Reitor" (1867), de Júlio Diniz, pseudônimo do médico e romancista português Joaquim Guilherme Gomes Coelho (1829-1871). Num dia destes, assistindo a um capítulo da novela de mesmo nome no SBT, supreendeu-se muitíssimo de saber que as pupilas do título eram duas donzelas, Clara e Margarida, sob os cuidados do sr. reitor, e não as pupilas dos olhos do santo homem.
O mancebo, Tiago, havia feito o trabalho escolar com base num resumo do romance registrado num livro didático, desses que já trazem a coisa mais ou menos mastigada. As vezes até digerida. Tinha em mente que pupila significa fenda, abertura central da íris do olho, que dá passagem aos raios luminosos para chegarem ao cristalino e depois à retina. Imagem que se reflete nos olhos. Menina do olho.
Mas pupila significa ao mesmo tempo menina adotada por alguém que a cria, como as do romance. Do latim, "pupilla", diminutivo de "pupa", boneca, criança, menina.
Muitos dos que não leram o livro ignoravam também que "reitor" é o título do pároco ou prior em certas freguesias portuguesas. Além, é claro, do cidadão que rege, dirige ou tem a seu cargo os negócios de certas corporações escolares e religiosas. Reitor da universidade, reitor do seminário, reitor do liceu. Esse, aliás, é o sentido principal da palavra lá e cá.
A propósito, "freguesia" é nome de circunscrição administrativa de uma paróquia em Portugal; povoação sede dessa circunscrição. Mas a primeira acepção é a de clientela ou hábito de comprar sempre a um vendedor, cá como lá.
Melhor é um dos significados da palavra "puto" em Portugal. Puto lá é como chamam os meninos, crianças, filhos, miúdos.
"O pá, como estão crescidos os teus putos! Deste-lhes fermento ao pequeno almoço?"
Mamprin e os clichês
O leitor Luigi Mamprin, grande fotógrafo e cultor de línguas –pelo menos italiano, latim, português e servo-croata–, manda relação de cabeludos lugares-comuns que lhe estragam o prazer da leitura de jornais e revistas e de ver e ouvir noticiários de TV e de rádio: contorcendo-se em dores, chorando copiosamente, farta munição, pontualidade britânica, pompa e circunstância, espetáculo de luzes e cores, corações e mentes, totalmente ou inteiramente nu, lotado, parado etc, no tempo e no espaço, vítima fatal, pesado caminhão, viatura policial, várias passagens pela polícia, na contramão da história, correr atrás do prejuízo (futebol), precioso líquido (rádio), no cardápio, a escolha dos nomes do ministério ou o loteamento do ministério ou a greve da Petrobrás ou a mamãezinha querida.
Apesar disso, embora considerando-se vítima quase fatal do vício de ler jornais, Mamprin avisa que continuará a lê-los, ainda que às vezes contorcendo-se em dores e chorando copiosamente por causa da enxurrada dos clichês linguísticos.
Que Deus o ajude.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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