São Paulo, sábado, 24 de dezembro de 1994
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Deus brasileiro leva português à fogueira

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Sustentar que Deus é brasileiro já custou a vida de um português. O fato –mote aparentemente irresistível para piadas– se deu há dois séculos, mas só agora vem à luz em detalhes.
Um jovem pesquisador paulista, Plínio Freire Gomes, 27, defendeu tese de mestrado sobre o tema no Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo).
O estudo relata que, por volta de 1740, Pedro de Rates Henequim, lisboeta, católico, arvorou-se em profeta –o "mais douto desde Moisés", como costumava dizer– e deu para interpretar a Bíblia de maneira peculiar.
"Graças à inspiração do Espírito Santo", percebeu o imperceptível nas escrituras sagradas. Concluiu que Deus iniciou a criação do mundo pelo Brasil e que aqui instalou o Jardim do Éden.
A maçã, proclamava Henequim, não escondia nada de diabólico. O fruto proibido era outro, a banana.
Pregava mais: que Deus se comunicava com a corte celeste em português. E que os rios do Paraíso não se chamavam Tigre, Eufrates, Fison e Gion. Chamavam-se Amazonas e São Francisco.
Para o profeta de Lisboa, Adão era indubitavelmente brasileiro. Criou-se no ponto central do país, deixou pegadas perto da Bahia e tinha como descendentes diretos os índios. Prova: a pele vermelha dos selvagens. Henequim acreditava que o nome Adão derivava da palavra hebraica "adom", que significa vermelho.
Em 21 de junho de 1744, a Inquisição portuguesa condenou o herege à morte. Acusou-o de contrariar os dogmas da Igreja e o estrangulou. Depois, lhe queimou o corpo, reduziu-o "a pó e cinza, de maneira que nem de sua sepultura houvesse memória".
Freire Gomes defende que o profeta português ajudou a lançar o mito-síntese da identidade brasileira –o de que o Brasil é um país "abençoado por Deus e bonito por natureza". "Henequim abraçou solitariamente um conceito que hoje invade o imaginário de todos nós."
Em 1968, o historiador Sergio Buarque de Holanda mencionou o personagem no prefácio à segunda edição de "Visão do Paraíso", livro que escreveu durante os anos 50. A citação aguçou a curiosidade de Freire Gomes.
O pesquisador decidiu buscar mais dados sobre Henequim na Torre do Tombo, arquivo de Lisboa onde se encontram documentos oficiais de Portugal.
Acabou achando o processo que a Inquisição moveu contra o profeta. É um catatau de mil páginas, manuscrito entre 1741 e 1744 por dez escrivães.
Sob orientação de Laura de Mello e Souza, professora de história moderna na USP, Freire Gomes se debruçou durante seis anos sobre a papelada. Em agosto, encerrou o estudo. Batizou-o de "Um Herege Vai ao Paraíso".
O Centro de Apoio à Pesquisa Histórica Sergio Buarque de Holanda, na própria USP, guarda a tese de 180 páginas, que está disponível para consultas.
O trabalho não apenas recupera a trajetória de Henequim. Também procura entender de onde brotaram as idéias do profeta.
"As proposições de Henequim nascem de conceitos que vinham se disseminando pela Europa desde o início da era colonial. Muitos cartógrafos e cronistas, incluindo Pero Vaz de Caminha, costumavam usar imagens edênicas para descrever a América e o Brasil", explica Freire Gomes.
A tese busca, ainda, esclarecer por que a Inquisição se voltou tão furiosamente contra o profeta.
"Henequim ameaçava tanto a ordem teológica da época quanto a ordem política", diz o historiador. "Como hoje, a Igreja do século 18 situava o Éden bíblico no Céu, fora do âmbito mundano. Henequim ousou localizar o Paraíso na Terra. Para alcançá-lo, ninguém precisaria morrer e abrir mão das delícias carnais."
Em termos políticos, as pregações do herege subvertiam a lógica da colonização. "Portugal era um dos impérios mais poderosos daqueles tempos", afirma o pesquisador. "Henequim, porém, insistia em difundir que o trono de Deus flutuava sobre o centro do Brasil. Ou melhor, propagava que o rei de todos os reis elegera como morada uma colônia e não a grande metrópole portuguesa."
A banca que examinou a tese deu nota máxima para Freire Gomes –dez com distinção e louvor.

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