São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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Um Natal de outro tempo

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Engrena a ré e ajeita o carro na garagem. Enquanto isso, a mulher distrairá as meninas e ele abrirá a mala, tirando os presentes que comprara. As duas bicicletas (verde para a maior, rosa para a menor) estão escondidas há uma semana no quarto da empregada. Faltavam os brinquedos dos miúdos, jogos de armar, carrinho de corda, aquela bota de feltro vermelho que Papai Noel usa, entupida de balas e bombons.
Retira aquilo tudo da mala do carro e atravessa o pátio do edifício, aderente às paredes como o Lobo Mau quando vai soprar em cima da casa dos Três Porquinhos.
Na semana anterior passara o domingo armando a árvore de Natal, as costas ficaram doendo, submeteu-se a fricções caseiras. Mas a árvore estava imponente com suas luzes piscando, as meninas ficavam olhando até tarde, até as cabecinhas caírem de sono. Ele as levava para a cama e, depois, sozinho, era ele que ficava olhando a árvore, fiscalizando as luzinhas piscarem.
Agora no meio da tarde, sentiu um cansaço estranho. A casa tinha cheiro de rabanadas sendo fritas, a geladeira estava abarrotada de coisas gostosas e geladas. As meninas pedem que ele acenda a árvore, não, ainda é cedo. Mas quem manda em sua casa e em seu Natal é ele: acende a árvore e liga a caixinha de música que toca "Adeste Fidelis".
E, de repente, cai o Natal sobre o mundo. Há um grande silêncio em torno de tudo. Ele ainda pensa: "As passas deste ano estão excelentes, melhores do que as do ano passado, parecem as passas que meu pai comprava!"
A mulher entra na sala trazendo na bandeja um gordo abacaxi, coroado como um rei, enrolado em fitas vermelhas. O cheiro da fruta se mistura ao das rabanadas. Da árvore vem um cheiro de seiva, de ramos colhidos, cheiro vegetal e vivo, sacrificado à sua festa.
Até que ponto o Natal é mesmo sua festa? Ele sabe que, um dia, não haverá natais nem árvore, nem meninas olhando as luzinhas piscarem. Um Natal sem ele. Ou pior: ele sem Natal.
Então fecha os olhos, com força, até passar a vontade esquisita que veio lá do fundo, inesperada, cruel.

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