São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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Natal tropical

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

Na época de Natal, tenho por hábito conversar com esses homens que se vestem de Papai Noel para ganhar a vida. Na sexta-feira passada parei para papear com um deles na rua Barão de Itapetininga, bem no centro de São Paulo. Notei que se tratava de uma pessoa de idade. Um senhor dos seus 70 anos e que estava ali trabalhando para poder viver um pouco mais.
Perguntei-lhe quais eram os seus próprios desejos nesta época de tantos presentes e repetidos agrados. Ele me respondeu jocosamente dizendo que a sua vontade mais imediata era sair daquela roupa de inverno, aqui usada por força da tradição e imposição do ofício e que nada tem a ver com o nosso tórrido verão tropical.
Mais adiante, porém, o Papai Noel revelou o desejo que estava escondido no fundo de sua alma. Sendo pai e avô, o pobre homem sonhava em ver aqueles garotos cheiradores de cola saindo da rua e entrando nas escolas. Nas suas oito horas de trabalho diário, ele dizia ter perdido a conta das cenas que assistia todos os dias, protagonizadas por menores viciados, trombadinhas e assaltantes que assim agem, antes de tudo, por terem sido abandonados pela família, pela sociedade e pelo governo.
Fiquei tocado com o relato. A minha observação da cidade é a mesma. Por onde passo vejo dezenas e dezenas de menores jogados nas calçadas, sujos, maltrapilhos e entregues à marginalidade –comportando-se como animais ferozes e que não tiveram a sorte de passar pelo processo civilizatório da educação escolar e familiar.
No final do ano passado, o governo do Estado promoveu uma pesquisa nas ruas do centro da cidade, cujo objetivo parece ter sido o de demonstrar que o quadro do menor abandonado não é tão preto quanto o pintado pela imprensa e por seus editorialistas. Foi chocante verificar, entretanto, que apenas 36% dos menores que ficam na rua durante o dia trabalham. Cerca de 64% das nossas crianças e adolescentes perambulam, pedem esmola e dormem a céu aberto –no mais completo abandono. No período noturno, esta proporção sobe para a espantosa cifra de 85%!
No Brasil abundam os órgãos públicos que, teoricamente, deveriam cuidar da criança. Seus diagnósticos são perfeitos. Mas sua prática é nula –ou quase nula. É a mania de criar órgãos no pressuposto de que com mais e mais burocracias resolve-se o problema.
Ledo engano. A realidade tem mostrado o inverso. A "burocratite" inoperante é típica de políticos inescrupulosos que, primeiro, utilizam os menores como tema de campanha para, depois de eleitos, usá-los como foco de demagogia barata que os fazem aparecer no noticiário e sustentar sua autopropaganda.
Neste dia de Natal, em que se comemora o nascimento da criança que será o brasileiro do amanhã, conviria aos políticos que trombeteiam em favor das crianças que procurem visitar e resolver in loco os problemas dos menores abandonados testemunhados diariamente pelo nosso querido e frustrado Papai Noel da rua Barão de Itapetininga.

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