São Paulo, terça-feira, 27 de dezembro de 1994
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Por uma política internacional das cidades

TARSO GENRO

Mudanças profundas vêm ocorrendo na economia mundial nas últimas décadas. Elas consolidam vários pólos de concorrência entre nações economicamente desenvolvidas, globalizam de forma galopante as relações econômicas –não somente as relações de mercado– e criam, ao mesmo tempo, mercados regionais integrados.
A postura dos partidos de esquerda perante os governos locais e provinciais (ou estaduais, como é o caso do Brasil), naquilo que refere às novas exigências abertas pela internacionalização capitalista, deve ser reformulada para sairmos de uma política de perplexidade negativa para uma ação de disputa estratégica.
Por um longo período tratamos –mesmo quando esta situação já mudara qualitativamente– as relações e interesses econômicos das grandes potências de uma maneira uniforme. A saber, de um lado estava o imperialismo e o seu "suporte social nacional" –as classes internas que necessitam dele para acumular riquezas– e, de outro lado, estava o povo, representado por nós, cuja orientação para o desenvolvimento do país seria baseada num projeto autárquico, negociado entre as empresas do Estado (com suas agências) e o empresariado nacional. Esse período foi superado pela integração endógena e planetária do capital financeiro na totalidade dos países civilizados.
A situação mudou radicalmente e não para melhor. Se o nosso parâmetro for a qualidade de vida nos países que foram colônias ainda no século passado, veremos que a miséria absoluta aumentou.
As relações, hoje, são também muito mais complexas, dado o grau de internacionalização do capital financeiro em escala mundial e face ao surgimento, na sociedade, de interesses mais sofisticados, mais ricos e mais diversificados, que abrangem inclusive grande parte das classes assalariadas, interesses cuja realização está ligada à cultura da integração econômica.
Essa situação nova aponta, inclusive, para a impossibilidade real de qualquer projeto nacionalista em sentido clássico, como já experimentaram alguns países (Argélia, Peru) ou de qualquer projeto socialista-autárquico, como já tentaram outros (Cuba, Albânia), simplesmente pelo fato de que as novas matrizes produtivas só se tornam universais pela integração econômica mundial, aliás fato já previsto no velho "Manifesto" de 1848.
Trata-se, portanto, de responder à seguinte questão: dada a impossibilidade de construir um modelo "de costas" para a nova ordem, como poderemos construir um projeto que reconheça essa nova ordem como incontornável e integre ao país as grandes conquistas científicas e tecnológicas da humanidade?
Como usar a multipolaridade dessa nova ordem para gerar uma relação negocial mais favorável aos países periféricos e, ao mesmo tempo, como preservar a autonomia interna para que esse modelo possa distribuir renda e acabar com privilégios seculares?
Para usar uma expressão cara à esquerda clássica, a luta de classes internacionalizou-se de maneira definitiva, mas de forma mais perversa do que esperávamos. Ela ocorreu precisamente quando todos os nossos paradigmas desabaram de forma impiedosa sobre as cabeças de todos os que lutaram e lutam para promover mudanças no sentido da igualdade e da justiça.
De outra parte, não é menos evidente que a necessária redução das fronteiras econômicas entre os países e a sua consequente "desregulamentação" gera outras possibilidades, que não estavam na nossa contabilidade teórica: a importância econômica que advém de uma nova autonomia das cidades e a consequente possibilidade de exercer essa nova autonomia em benefício das populações locais, a partir de um projeto democrático de governo.
Surge, então, a possibilidade real de um novo tipo de "política externa" dos municípios e das províncias (Estados), através de formas modernas de comunicação comutativa, furando o bloqueio do comércio externo controlado, em regra, pelas grandes corporações monopolistas.
Possibilidades que contêm a ligação de ações econômicas locais com outras cidades do mundo, não só a partir de intercâmbios que transfiram tecnologia e novas formas de organização do trabalho, mas também proporcionando relações diretas de setores sindicais e empresariais locais, com seus colegas de outros centros do mundo, vínculos que até então eram longínquos e meramente formais.
Recentemente, a convite do governo japonês, visitei por duas semanas aquele país, cumprindo uma extensa programação de relacionamento político, cultural e econômico. A cidade de Kanasawa, distante duas horas de Tóquio pelo trem-bala, com 500 mil habitantes –cidade irmã de Porto Alegre– tem uma agressiva política externa há mais de dez anos.
Ela desenvolve um intercâmbio permanente com cinco grandes cidades (da ex-URSS, Estados Unidos, França, China e Brasil), para as quais dirige um esforço visando um relacionamento cultural e político com nítidas consequências econômicas.
Em Hashimoto, visitei, durante uma boa parte do dia, a Faculdade Politécnica, escola superior de formação de instrutores de alta tecnologia ("design", microeletrônica e informática), que forma quadros especialmente voltados para as pequenas e médias empresas. Lá estão estudantes e estagiários de várias partes do mundo, adquirindo um patrimônio técnico imprescindível para gerar desenvolvimento nos seus respectivos países.
Imediatamente comecei a articular uma relação com a nossa Incubadora Empresarial Tecnológica, experiência-modelo da Prefeitura de Porto Alegre com outras instituições da sociedade civil, relação essa que poderá proporcionar um salto no nosso trabalho local.
Em maio de 95, receberemos em Porto Alegre o prefeito de Kanasawa, o presidente da Câmara de Vereadores e empresários daquela cidade para aprofundar os nossos vínculos e propor novos intercâmbios.
Os japoneses ensinam –com a sua cultura secular– que é preciso pensar muito e agir devagar, para obter uma mínima margem de erro em relação ao objeto desejado, nas relações entre povos com histórias diferentes.
E isso não é possível somente para quem tem uma história cultural e filosófica de 3.000 anos. Pode ser uma lição universal colhida na observação e na dedução, baseadas no próprio relacionamento cultural "externo", que uma política internacional agressiva das cidades pode promover.
Os governos municipais das grandes cidades e os governos provinciais que não entenderem essa nova realidade da internacionalização serão meros pacientes deste processo. E, como pacientes, não terão um papel ativo, produzido por uma estratégia de inserção nessa nova ordem, que dispute novas formas de relacionamento internacional e que, inclusive, contribua para apontar os elementos de uma ordem econômica mundial mais democrática e, à curto prazo, menos influenciada pelos grandes monopólios e empresas transnacionais.

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