São Paulo, sábado, 31 de dezembro de 1994
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Malraux foi criador de museus imaginários

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

A cada fim de ano brilha, entre as incontáveis indústrias voltadas para a invenção dos presentes de festas, aquela que se encarrega de construir novos e belos museus imaginários. Eu me refiro aos livros de arte da nossa época.
Quem lhes deu esse nome perfeito de museus imaginários foi André Malraux (1901-1976) e ele próprio, tomado de uma das febres mais criadoras de nosso tempo, construiu uma série desses museus: às obras de arte neles fotografadas junta-se o texto mágico do próprio Malraux, às vezes quase de porre, quase intoxicado pelas próprias e inebriantes palavras, mas descobrindo sem cessar nos quadros, nas estátuas, nos medalhões iluminados sob seu comando para as fotos, pormenores e significados que nossa limitada observação da obra ali impressa jamais descobriria.
Foi no primeiro dos dois volumes da sua "Psychologie de L'Art" (Skira, 1947) que Malraux registrou em prefácio sua descoberta. Primeiro houve no mundo objetos sagrados, o homem tratando de dar forma ao seu fervor e ao seu temor. Surgiu, mais tarde, uma arte profana mas com destino certo: retrato, paisagem, episódio de caça para castelo, batalhas, coroações, batizados régios para prédios públicos.
Ao fim de séculos dessa criação artística mundial, anárquica, surgiu na Europa dos séculos 18 e sobretudo 19 a idéia disciplinadora dos museus. (Disciplinadora e um tanto voraz, eu acrescentaria, pois começaram os países europeus a saquear tesouros artísticos de países cansados, distraídos, como a Grécia e o Egito.)
Mas ouçamos Malraux: "Depois de ter sido o meio de criação de um universo sagrado, a arte plástica foi sobretudo, durante séculos, o da criação de um universo imaginário ou transfigurado. O museu iria contribuir com força para transformar esses sonhos em pinturas, assim como os deuses em estátuas. E a metamorfosear em quadros os próprios retratos".
E Malraux exemplifica: o retrato do duque de Olivares vira simplesmente um Velásquez e quem quer saber quem foi o Homem do Capacete ou o Homem da Luva? Eles são, respectivamente, um Rembrandt e um Ticiano.
No entanto, é até hoje ainda difícil, e até pouco tempo atrás era dificílimo, visitar museus em série, e, mais ainda, procurar neles o trabalho de certos artistas do nosso interesse no momento. Até o século atual, mesmo um estudioso, um apaixonado da arte da Antiguidade ou da Renascença se contentava em grande parte vendo gravuras ou cópias precárias. Assim foi até o dia em que raiou a liberdade nos céus da arte.
Malraux: "Porque um museu imaginário sem precedentes se abriu, que levaria à extrema intelectualização iniciada pelo confronto incompleto dos museus respondendo ao apelo destes, as artes plásticas inventaram sua própria impressão. (...) Hoje em dia, qualquer estudante dispõe da reprodução em cores da maioria das obras magistrais, descobre um sem número de pinturas secundárias e mais as artes arcaicas, as esculturas indiana, chinesa, pré-colombiana, uma parte da arte bizantina, os afrescos românicos, artes selvagens, populares". Isto sentado numa poltrona, entre as capas duras de um livro provavelmente caro, mas, como se diz, sem preço.
Estranha figura foi Malraux. Eu o conheci de uns dois encontros jornalístico-sociais quando ele visitou o Brasil em 1959. O Brasil e Brasília, pois ele aqui esteve, como ministro da Cultura de De Gaulle, para lançar a pedra fundamental da Maison de France em terreno doado pela Novacap à República Francesa.
Era um homem tenso, atento ao que ouvia, preocupado em dar respostas exatas, quase epigramáticas. Já era celebérrimo então, como romancista, como historiador de arte, como rejuvenescedor de Paris. É que, ministro da Cultura, encontrou Paris como era sempre, como eram as cidades européias –encardida, suja, enegrecida pelos séculos.
Malraux fez ouvidos de mercador aos que eram a favor da sagrada "pátina" dos tempos e mandou lavar tudo com água e sabão, detergente e vassoura. Lavou Paris com energia e amor, como quem desperta e banha, ainda meio sonolenta, uma ninfa de mil anos. Paris ficou cor de mel. E as demais cidades européias foram também para o banheiro.
Que avaliação se poderia fazer hoje de toda a obra de André Malraux? Não sou conhecedor confiável do seu acervo literário, mas arriscaria dizer que mesmo seu romance básico, "A Condição Humana", caiu bastante no esquecimento e sua memorialística padece talvez de um certo preciosismo. Para mim, a herança estupenda e imorredoura de André Malraux são os museus imaginários que ele para nós montou, esses assombrosos palácios forrados de fotos inspiradas e ressoantes de palavras capitosas.
Seu livro fundamental, sua obra-prima, um dos maiores livros do século, é "A Metamorfose dos Deuses". Estou me policiando com firmeza para não cometer exageros, mas o mínimo que posso dizer é que Malraux criou com esse livro a mais palpável escada de Jacó que conheço, uma luminosa escada rolante entre o Céu e a Terra. Por ela subimos e descemos sem cessar nós mesmos, os homens, e cruzamos o tempo todo com os deuses que a arte foi criando. Esses deuses tiveram sobre nós, um dia, um poder absoluto, e com o passar do tempo se transformaram em estátua, pintura, medalha. E estão entrando, em procissão, para os museus imaginários.
Em "A Metamorfose dos Deuses" Malraux ultrapassou a si mesmo. Construiu não um museu mais e sim a catedral imaginária onde se refugia como espectador o homem moderno, fraco, que parece incapaz de criar os novos deuses que um dia virariam quadro ou estátua.

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