São Paulo, sábado, 31 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Editora resgata poesia de Robert Burns

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Qual o melhor réveillon do mundo? O meu, ora.
Ok, pode ser o seu, mas só se a sua imaginação for mais fértil que a minha.
O meu é num transatlântico de luxo. Não o Poseidon, evidentemente, que foi a pique justo numa passagem de ano, mas o Normandie, todo decorado por Van Nest Polglase, o "interior designer" dos musicais da RKO.
Aquele ali, de traje a rigor, chique que nem Cary Grant e bonito que nem Tyrone Power, sou eu. Dentro de alguns instantes, vou tirar Carole Lombard para dançar "Cheek to Cheek". Antes da meia-noite, passarei por aquela mesa enorme, para dar um abraço no Fred, no Eddy, no Bill, no Mario, no Cole, e um beijo na Irene e na Kathy.
Exato: Fred Astaire, Edward Everett Horton, William Powell, Mario Reis, Cole Porter, Irene Dunne e Katharine Hepburn.
Tem coisa melhor? Tem. Isso aí sem o brinde da passagem de ano.
Nada é mais triste que a maneira como os americanos se despedem do ano que passou. Por sorte eu sempre arranjo um jeito de acordar antes da contagem regressiva ("Ten! Nine! Eight! Seven! Six! Five! Four! Three! Two! One! Happy New Year!!!"), porque depois disso todos cantam a indefectível "Auld Lang Syne" –até na Times Square– e eu não acho a menor graça em começar o ano chorando.
É a canção mais deprimente que eu conheço, com a dupla desvantagem de saudar o ano entrante de forma dolente e manifestar saudade pelo que passou (e quase sempre merece ser esquecido). De origem escocesa, "Auld Lang Syne" significa, em inglês, "old long since", ou simplesmente "old times" (velhos tempos passados). Todos a conhecem, inclusive porque ela ganhou entre nós uma versão ("Canção da Despedida"), celebrizada por Francisco Alves. Felizmente não se estabeleceu por aqui como prefixo musical de ano novo. Reservaram-na para ocasiões nada festivas, condizentes com o espírito e a letra de seus versos: "Adeus, amor, eu vou partir..."
Já provocou muito nó na garganta, sobretudo em filmes, com ou sem réveillon em cena. Minha introdução à sua cava melancolia aconteceu no cinema Metro, em algum ponto dos anos 40. Na tela, "A Ponte de Waterloo", sob a qual, aliás, deslizava um Tâmisa de lágrimas. Jamais me recuperei do trauma.
Logo mais, quando 1995 estiver entrando na vida de todos nós, milhões de americanos e britânicos a entoarão, em meio a confetes, serpentinas, cornetadas, beijos, abraços e efusivas libações alcoólicas. Efusivas e adequadas, pois "Auld Lang Syne" foi composta não para lamentar o amor que partiu ou o ano que acabou, mas para embalar uma carraspana tabernal. Seu autor, Robert Burns, vivia enchendo a cara nas tavernas de sua terra, a Escócia.
Poeta, o maior de seu país, Burns morreu jovem, em 1796. Curiosamente, não foi a bebida que o levou desta para melhor a três anos dos 40, mas uma febre reumática. Filho de camponeses, já aos sete dava duro na roça. As poucas horas de folga que lhe sobravam eram divididas entre a leitura, o versejar, o uísque e as aventuras eróticas que o fizeram pai de nove filhos ilegítimos. Burns morreu, pois, de excesso de atividades.
Precocemente alfabetizado, compôs seus primeiros versos aos 16. Já eram românticos, ou melhor, pré-românticos, desinibidos e fluentes. Ficariam, nas criações maduras, ainda mais desinibidos e desbragadamente líricos. Sua musicalidade escancarou-lhes as portas de todas as baiúcas de Edimburgo, celeiro das incontáveis baladas que sua melofobia não conseguiu abortar. Foi um precursor de Shelley, Byron, Keats –e até do nosso Vinicius de Moraes. Para não falar em Gregório de Mattos, entusiasta de suas sátiras políticas.
A despeito de sua popularidade (já li um verso dele impresso no maço de uma marca inglesa de cigarros), ficou séculos esquecido por nossas editoras. Até ser exumado pela Relume Dumará, que acaba de traduzir uma seleta de sua obra: "Robert Burns - 50 Poemas". Para compensar o atraso, adicionou a cada volume enviado às livrarias uma pequena garrafa de uísque. Por R$ 19, a gente leva para casa 50 poemas de Burns e 50 ml de Teacher's.
É uma dupla homenagem: aos 500 anos da invenção do uísque e aos porres homéricos que o poeta tomou. E que poderia ser tripla, com uma gravação de "Auld Lang Syne". De preferência com a orquestra de Guy Lombardo, que dela fez seu prefixo nos anos 30. Que é quando, aliás, acontece o meu réveillon.

Texto Anterior: Hoje eu faço 51, uma péssima idéia!
Próximo Texto: Malraux foi criador de museus imaginários
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.