São Paulo, sábado, 31 de dezembro de 1994
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Relatórios do prefeito Graciliano transformam burocracia em arte

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Grandes ficcionistas discutem seu país sem dizer que o estão discutindo. Graciliano Ramos (1892- 1953) era tão bom escritor que mesmo nos despachos que produzia como prefeito de Palmeira dos Índios (AL) não pregava "o Brasil isto, os brasileiros aquilo".
Apenas exibindo uma característica particular e outra, iluminava as trevas do conjunto. É o que se vê em "Relatórios", que a editora Record acaba de publicar, reunião dos textos escritos pelo prefeito Graciliano em 1928 e 29.
A edição da Record, caprichada, difere da publicada em 1993 pela editora Massangana, que levou o título "Dois Relatórios ao Governador de Alagoas".
Organizada por Mário Hélio Gomes de Lima, tem um terceiro e inédito relatório, cartas, bilhetes e um discurso de Graciliano.
Traz também uma marginalia aos relatórios: os comentários do então governador de Alagoas, Álvaro Paes, artigos de dois jornais da época e textos de Joel Silveira, Marques Rebelo, Roberto Martins, André Luís Resende e outros.
Os relatórios valem a edição de 140 páginas, ainda que somem 30 delas. São preciosidades e não só por afirmações que mostram o patético brasileiro: "Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos. Saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma."
Mas também, ora, porque são de autoria de Graciliano. Grife-se a palavra autoria. Graciliano não poderia fazer textos burocráticos. Dá ritmo e economia à sintaxe, dá tessitura e ironia à semântica. E nos faz ler com prazer um relatório de miudezas orçamentárias de um município miúdo.
Aí está o autor de "Infância", com sua índole resignada; o de "Angústia", com seu desencanto agudo; o de "Vidas Secas", com seu olhar sobre a solidariedade; e o de "São Bernardo", com sua análise da crueldade.
Aí está, por corolário, o estilo lacônico e sutil que o marca:
"Certos indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos." É Graciliano nas pedras.
Prove mais um aperitivo, rascante como pinga: "Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta."
Os relatórios têm outras qualidades. O inédito, por exemplo, mais que os dois anteriores, prova que o crítico Otto Maria Carpeaux estava certo sobre a literatura de Graciliano, que sua essência é o estilo, e ajuda a reforçar a idéia de Carpeaux com uma verificação.
A verificação é a seguinte: embora objetivo e viril, o estilo de Graciliano é fortemente baseado, além do ritmo, nos adjetivos. Há muitos no relatório: "Pus termo às extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores."
Adjetivos indispensáveis, que não combinam com o estereótipo de Graciliano como minimalista. Eis mais duas características dos grandes prosadores.

Livro: Relatórios
Autor: Graciliano Ramos
Quanto: R$ 8,50

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