São Paulo, sábado, 31 de dezembro de 1994
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Erro de estratégia

PAUL SINGER

A pergunta é sobre o futuro, o que requer uma resposta condicional e probabilística. O novo governo está comprometido a prosseguir na senda do Plano Real. Ora, a estratégia do Real tem sido ignorar os conflitos distributivos como causa das pressões inflacionárias; a estabilidade deve resultar de uma combinação de valorização cambial e abertura às importações, restrição do crédito e austeridade fiscal. O que significa limitar a demanda interna e maximar a oferta externa, para criar uma situação de superprodução relativa que seja a adversa às reivindicações de reposição de perdas: de salários, de margens de lucro, de preços mínimos etc.
Em 1994, o governo pôs tudo isso em prática, sem ainda criar superprodução expressiva. A restrição ao crédito, ao gasto público (sobretudo contendo o salário mínimo em R$ 70,00) e o barateamento das importações conseguiram reduzir a inflação, moderando o crescimento da economia, mas sem lançá-la em recessão. A inflação prossegue, embora em nível quase civilizado.
A estabilidade exige que essa inflação residual seja ainda mais reduzida, pois caso contrário ela tende a aumentar. O que significa que o novo governo, se não quiser enfrentar os conflitos distributivos diretamente, terá de aumentar as doses cambial, monetária e fiscal da política já em vigor. E tudo leva a crer que é o que irá fazer, na esperança de diminuir a inflação rapidamente para depois permitir que a economia volte a crescer e a renda possa ser redistribuída.
A política convencional de estabilização atinge seu objetivo à custa do crescimento econômico. Em 1994, o "trade-off" (a combinação compensatória) foi extremamente favorável, porque a desinflação causou uma explosão de demanda, a qual foi contida sem provocar recessão. Mas de agora em diante as pressões inflacionárias tendem a redobrar sem que novas forças de expansão da demanda sejam liberadas. Por isso a estratégia convencional tem maior probabilidade de vir a ser recessiva. É de se temer que grande parte dos quatro anos do mandato do novo governo seja gasta em estabilizar a estabilidade, sem que haja tempo para o crescimento.
No que se refere à redistribuição da renda, ela exige medidas que restrinjam o consumo supérfluo dos ricos para abrir espaço ao consumo necessários dos pobres. Essa exigência será tanto maior quanto menos crescer a economia. Talvez a reforma fundamental para que seja possível redistribuir a renda seja a tributária.
O governo federal terá que poder dispor de recursos para expropriar terras e nelas assentar agricultores pobres, iniciar um programa de Renda Mínima Garantida ou recuperar o salário mínimo e assim recuperar o valor das aposentadorias baixas. O que somente será possível pelo aumento dos impostos que gravam as rendas elevadas, as grandes fortunas e os ganhos de propriedade.
O mero enunciado dessas medidas já mostra quão pouco prováveis são, a dependerem do novo governo. Ou este tem como objetivos igualmente prioritários estabilidade, crescimento e redistribuição ou continua com a atual política, que condiciona os dois últimos objetivos ao atingimento do primeiro.

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