São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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Neste carnaval, liberdade até para pensar

ALOYSIO BIONDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em dezembro, a Petrobrás Distribuidora vendeu grande lote de ações, por decisão do Ministério da Fazenda, dentro da política de "fazer dinheiro" e "privatizar" a toque de caixa. Preço: CR$ 9,00. Em janeiro, isto é, poucos dias depois, as ações já eram vendidas a CR$ 18,00. Vale dizer: o Tesouro jogou fora um ganho de 100% sobre o seu capital. "Felizardos" tiveram esse lucro às custas do Tesouro, isto é, da classe média e do povão. Razão da valorização das ações? Além da própria alta nas Bolsas, a Petrobrás Distribuidora teve um salto em seus lucros, que cresceram 50% sobre 1992.
Nenhuma surpresa. Era perfeitamente possível prever que, se esperasse um pouco –o balanço foi divulgado já neste final de janeiro– o governo venderia as ações a preços muito mais altos. Ninguém vai suspeitar que haja desonestidade na decisão da equipe ministerial. Mas é inegável que sua distração tem sempre o mesmo resultado: grande lucros para os grupos que tomaram a economia brasileira de assalto.
O caso da Petrobrás Distribuidora é uma apenas gota d'água no mar de monstruosidades que estão ocorrendo na economia brasileira e contra as quais, incompreensivelmente, a sociedade não reage. Note-se bem: não são "negociatas" feitas nos bastidores, na calada da noite. É tudo às claras, com operações absurdas defendidas pela equipe econômica e acólitos como necessárias ao país. Concretamente: há alguns meses, divulgou-se que o Tesouro tem participação em mais de mil empresas, "até fábricas de sutiãs", dizia o noticiário. Outra prova, diz-se, dos desmandos e gigantismo do Estado brasileiro. É preciso vender tudo, privatizar tudo, para o Estado cuidar de saúde, educação etc..
Quanto à necessidade de privatizar, perfeito. Mas a explicação para as distorções sempre foi criminosamente manipulada, dentro da campanha de "lavagem cerebral" da sociedade brasileira. Como as ações dessas mais de mil empresas vieram parar nas mãos do governo e de seus bancos? Houve fases, no Brasil, em que o governo tinha programas especiais para estimular o crescimento ou modernização de determinados setores industriais, inclusive vestuário (daí os célebres "sutiãs"). Como as empresas nacionais dessas áreas eram de porte pequeno ou médio, jamais teriam dinheiro para fazer grandes investimentos –e seus projetos ficariam caros demais, inviabilizados, se fossem enfrentar os juros bancários normais.
Então, o governo montou um esquema especial (isso é da política industrial): os bancos oficiais "compravam" parte das ações das empresas, tornando-se sócio delas. Vantagem para o empresário: não pagava juros sobre esse dinheiro do "sócio". Vantagem para o governo: a longo prazo, quando o projeto ficasse implantado, e a produção desse o salto, participaria dos lucros. Primeira conclusão: o governo não ficou sócio dessas empresas por "gigantismo". Os empresários é que eram os beneficiários dessa política. Não era uma política "estatizante", e sim "privatizante", na medida em que fortalecia o empresariado.
Atenção: o esquema previa que, quando o projeto ficasse pronto e surgissem os lucros, o governo venderia as ações preferencialmente de volta aos mesmos donos da empresa, dentro de determinado prazo, e por um valor criteriosamente calculado. Porque essa etapa de revenda das ações não aconteceu? Aqui, sim, surgiram as distorções. Certamente, os empresários preferiram continuar "mamando" nos bancos oficiais seus acionistas – e conseguiram engavetar tudo.
Então é correto vender essas ações? Corretíssimo. Mas a preço justo, para o Tesouro e bancos oficiais não terem prejuízo. O que está acontecendo é estarrecedor. Assessores do ministro e dirigentes do BNDES (Banco Nacional de Desevolvimento Econômico e Social) disseram, com todas as letras e números, que essas ações valem cerca de US$ 11 bilhões, se for levado em conta o valor do patrimônio das empresas. Como, porém, os lotes de ações são proporcionalmente pequenos, isto é, uma fatia pequena do capital das empresas, –dizem eles– devem ser vendidos mais barato. Nada de US$ 11 bilhões. Quanto? De US$ 500 milhões a US$ 800 milhões. Estarrecedor. Negócios da China, às escâncaras. E –atenção– que já começaram: o BNDES vem leiloando esse tipo de ações nas últimas semanas, nas Bolsas.
Incrível. A defesa da "privatização a toque de caixa" serve de biombo para monstruosidades como essas. O exemplo da Petrobrás Distribuidora mostra claramente que se o ministro estivesse empenhado em obter recursos para o Tesouro e evitar "rombos", planejaria uma programação para a venda dessas ações –divulgando largamente todas as condições. De um lado, o Tesouro obteria melhores preços. De outro lado, maior número de investidores se beneficiaria com a venda das ações.
É grotesco. Durante anos, o Tesouro e bancos oficiais ficaram com o "osso", retiraram as ações em épocas de vacas magras. Quando a economia e as Bolsas deslancharam, surge a chance de vender as ações a bom preço, compensando parcialmente aqueles prejuízos do Tesouro (isto é, da classe média e do povão). Isso não acontece: rapidamente, o lucro está sendo colocado no bolso dos felizes "mamadores" do Tesouro e bancos oficiais. País estranho. Uma equipe cede o patrimônio público com 90% de perda e a sociedade fica passiva. São no mínimo US$ 9 bilhões...
Ficou proibido, nos últimos anos, questionar descaminhos da política de privatização. Para dizer a verdade, ficou proibido questionar uma série de mentiras sobre a economia brasileira. Já que o Carnaval é a grande festa da liberdade, quem quiser pode ousar pensar sobre alguns dos dogmas que formadores de opinião têm exaltado. Vamos a eles:
Revelação – Finalmente, o prefeito Paulo Maluf prestou um serviço ao país. Inestimável. Ele publicou um anúncio para explicar que desistiu de parte do aumento previsto para as tarifas de ônibus graças a uma "barganha" com o ministro da Fazenda. O noticiário da imprensa não havia contado isso: dizia que o ministro "havia pedido". Maluf disse até o preço: o ministro mandou a Caixa Econômica Federal liberar um empréstimo de 109 milhões de dólares à Prefeitura de São Paulo. Quem quiser refletir, pode supor que esse preço cobre também o apoio da bancada de Maluf ao "pacote" do ministro, no Congresso. Maluf documentou, para a sociedade, que a equipe FHC trouxe de volta a estratégia do "é dando que se recebe". Aliás, dias antes, FHC havia congelado a liberação da verba federal para a célebre Linha Vermelha, do governo Brizola, porque o PDT vinha atacando seu pacote. Surgiu um acordo com Brizola, semelhante ao de Maluf, que levou à liberação da verba...
Suposição – O minisitro reduziu de 15% para 9% a fatia da receita dos Estados que os governadores devem usar para começar a pagar suas dívidas com a União. São Paulo é o maior caloteiro. Deve à Caixa, ao Banco Central (dívida que chegou a US$ 5 bilhões, do Banespa), ao FGTS etc.. São Paulo tem a maior bancada no Congresso, liderada por Fleury e Quércia. Não houve barganha entre FHC e Fleury?
Rebelião – O deputado quercista/fleuryzista Luís Carlos Santos substituiu o impecável Roberto Freire, político com P maiúsculo, na liderança do governo na Câmara. Terá sido convocado por sua projeção nacional? Ou habilidade que demonstrou em negociar com deputados na Assembléia paulista, que sempre aprovaram "tudo" que interessa a Quércia e Fleury?
Não custa ousar pensar. Nunca o Congresso havia rejeitado um plano econômico de nenhum ministro. Agora, está exigindo alterações. Será um mal? Ou um avanço? Para aprovar o seu "projetão", o governo Collor convocou Fiúza e (lembre-se) Bornhausen –e isso foi apresentado pela imprensa, na época, como "articulação política". Hoje, é objeto de CPIs. Não há nenhum paralelo entre a convocação de Bornhausen e de Luís Carlos Santos? As barganhas com Maluf, Brizola e governadores em geral? A diferença? Aparentemente, as bancadas se rebelaram contra os acordos feitos entre as lideranças. Um mal? Ou um Congresso melhor?

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