São Paulo, sexta-feira, 11 de fevereiro de 1994
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'Brazil' traduz escândalo da selvageria

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O novo romance de John Updike, "Brazil" (ed. Companhia das Letras) tem sido criticadíssimo, e com razão. A história do livro é mesmo difícil de engolir.
Negro favelado e jovem branca de classe alta se apaixonam em Copacabana. Fogem para São Paulo. Sob mira de revólver, o negro é forçado pela família da moça a desistir de seu amor. Trabalha durante dois anos na indústria automobilística.
Depois, Tristão e Isabel se reencontram em Brasília. Fogem para o sertão. Minas de ouro. Complicações com uma pepita. Nova fuga. Nos ermos do cerrado, topam com autênticos bandeirantes, de bacamarte e gibão. Um pajé faz feitiço. O negro vira branco. A branca vira negra.
Não conto o resto do romance, mas isso basta para dar idéia de sua estranheza.
Inútil insistir no que já se disse contra o livro. Alguns problemas, entretanto, ficam no ar.
O primeiro problema é que a implausibilidade, a maluquice do enredo são claramente voluntárias por parte do autor.
Seria ingênuo dizer que Updike cometeu gafes ridículas a respeito da realidade nacional. Que, como americano de passagem, imaginou situações sabidamente irreais aos olhos brasileiros.
O autor nos surpreende, ao contrário, pela exatidão das referências à realidade brasileira, quando quer fazê-las. Especifica, com diligência de bom aluno, o nome das butiques frequentadas por Isabel, e dá, como endereço de casal rico em São Paulo, uma esquina da rua Groenlândia.
É como se dissesse: "Estou perfeitamente informado sobre o Brasil". Sabe, portanto, que sua história é implausível.
Tudo se desculparia se Updike tivesse incorrido no gênero do realismo fantástico. Se a troca de cor da pele entre os personagens ocorresse numa narrativa pródiga em incidentes oníricos, em turvações de câmera lenta, um pseudo-surrealismo, em artificialidades líricas.
Se o aparecimento de bandeirantes de bacamarte fosse precedido, digamos, por uma ventania, por magotes de borboletas furta-cor –ou se Isabel, a caminho da taba do pajé para virar preta, levitasse por instantes–, o leitor reconfortado diria: "Ah, é realismo fantástico".
Mas Updike, por algum motivo, deu homogeneidade à narração e contou tudo como se tudo tivesse acontecido de fato. O efeito, infelizmente, não foi de "realismo-patacoada" e não de realismo fantástico (o que, aliás, também não seria grande coisa).
Resta saber, ou imaginar, por que Updike fez isso.
Ele é um excelente escritor –e inúmeras passagens neste "Brazil" valem a pena ser lidas, apesar de todas as críticas. Sente-se, no estilo de Updike, o poder que só de vez em quando encontramos na literatura: a impressão de que tudo, absolutamente tudo no mundo, está para ser visto, apreciado, descrito. A luz do sol entre as tábuas de um barraco, o cansaço depois de um dia de trabalho, um brilho ruivo nos cabelos, a suspensão das luzes de mercúrio na noite do Rio, a cor cinza das nuvens antes da madrugada, o calor vivo de um corpo –Updike é um virtuose, um poeta em descrições desse tipo.
Vê-se que é em trechos como esses –e não na organização da história– que Updike se realiza como escritor.
O que terá acontecido, então, no momento de escrever esse romance algo ridículo?
Desconfio o seguinte. Updike veio ao Brasil, Deparou-se com paisagens geográficas, com realidades contrastantes. Conversou com brasileiros, interessou-se. Pensou: tudo isso é tema de um romance.
Aliás, provavelmente tudo o que acontece na vida de Updike é tema de romance. Tem-se a impressão de que as menores coisas de seu cotidiano –o gosto de um amendoim, um jogo de golfe, o fechamento de uma loja em sua cidade natal– são motivo capaz de pôr seu estilo em funcionamento, com belíssimos efeitos.
Eis, então, que Updike chega ao Brasil. Escritor "full-time", ele não poderia deixar de registrar as impressões que recebeu. As da natureza tropical, certamente; as de nosso conturbado ambiente urbano, sem dúvida.
Mas sobretudo –e isso surge em "Brazil" a todo momento– a nossa paisagem física, a nossa realidade étnica. Matizes de cor da pele, cafusices, mestiçagens, brilhos negros em olhos azuis, gingas, loirices crespas, pretumes finos. O mundo Gilberto Freyre, enfim: e nenhum brasileiro foi tão "americano" ou "europeu" do que Gilberto Freyre, no seu pan-erotismo deslumbrado. O racismo, a mais revoltante das doenças sociais, amenizou-se na obra de Gilberto Freyre em perversão doce. Perceber nuanças de morenice em Vera Fischer, por exemplo, como quem avalia um "pétillant" na safra 78 do Château Margaux.
A sensualidade, o sexo, predominam frementes no "Brazil" de Updike. É basicamente isso o que importa no romance entre Tristão e Isabel –personagens vagos não fosse a atração física que os une.
Mas o autor somou suas impressões pessoais –paisagem, Rio, São Paulo, peles mestiças– com as informações que adquiriu.
Informou-se, então, do passado bandeirista. Do ciclo do ouro. Da construção de Brasília. Da democratização, das lutas sindicais. Do be-a-bá histórico-sociológico, enfim.
O que poderia ter sido um belo relato de viagem teve de transformar-se, desse modo, em romance. Contra toda verossimilhança, Updike procurou fazer da história de Tristão e Isabel uma viagem pelo passado brasileiro –para trás nos séculos, para oeste no espaço, até os bandeirantes e os índios.
Foi implausível. Sabia disso. Vejo duas razões para sua falha neste romance.
A primeira é que reagiu como "bom aluno", como aplicado intérprete da sociedade, quando o que o atraía nesta sociedade era a pura exuberância sexual.
A segunda é que um ambiente como São Paulo, por exemplo, pareceu–lhe cretino demais, americano demais, banal demais, imitativo demais para merecer qualquer consideração. Os últimos capítulos do livro, que retratam o cotidiano burguês aqui, são eloquentes a esse respeito. Como reagir à inviabilidade paulistana? Escrevendo um romance burguês entre a avenida Paulista e o Clube Pinheiros? Seria muito chato. Daí que Updike delirou.
Quis confrontar-se com a selvageria latente em nossa sociedade. Procurou bandeirantes e pajés, para nosso escândalo e um pouco para aliviar o próprio escândalo que sentiu diante do fenômeno mestiço, ou simplesmente brasileiro; impressionar-se com ela, ao ponto da incredulidade, é coisa de branco; traduzir esse espanto num romance fraco foi o erro de Updike.

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