São Paulo, sexta-feira, 11 de fevereiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Wharton leu a Bíblia da economia doméstica

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No século 19, culinária e administração do lar (ou economia doméstica) andavam de mãos dadas. Os livros de cozinha ensinavam não só a cozinhar, mas a limpar pratas, manter o verniz, colar o quebrado.
O livro de culinária e economia doméstica mais vendido no mundo é o "Beeton's Book of Household Management", publicado na Inglaterra em 1861, revisado em 69, e outra vez em 88, com muitas gravuras, mostrando decorações de mesa, "japonaiserie" vitoriana, 1.112 páginas e 2.751 verbetes. Mrs. Beeton tornou-se a maior lenda doméstica dos dois lados do Atlântico e com certeza todas as mulheres de "A Época da Inocência", pelo menos, tinham seu livro como Bíblia. Edith Wharton, a autora de "A Época da Inocência", pelo menos, tinha.
Ela própria, começou por escrever um livro de decoração de interiores e jardinagem, que era o assunto do qual as mulheres podiam falar à vontade e que ela sensualmente adorava. Foi uma anfitriã e dona de casa de se tirar o chapéu. Sabia tudo. Entendia de cada móvel, de cada estofado, de flores secas arranjadas sob cúpulas de cristal, de gardênias na lapela e chá das cinco.
O filme de Scorsese, adaptado do livro de Edith Wharton, é perfeito na sua caça obsessiva aos detalhes da casa vitoriana, da moda vitoriana. Fica óbvia a glorificação do mundo das coisas, tão típica da época, o "horror vacui", todo o espaço entupido de objetos.
É uma sucessão de louças, talheres, cristais, pratarias, vasos, conchas, estatuetas, chalés, colares, anéis, pulseiras, panos, vestidos, almofadas, papéis de parede, quadros, molduras, canetas, cigarreiras, binóculos, bengalas, livros, "gadgets". E como se não bastasse, tudo isso nomeado, catalogado, classificado. Coisas vivíssimas, coloridas, elaboradas, guarnecidas por quem neste filme? Um trio de personagens principais chatos, contidos, formais, afogados pelo "décor", sem conseguir passar a emoção subjacente. Complicações da linguagem do cinema.
Eles tinham que parecer contidos e formais, falar uma coisa e sentir outra. Como é que fica o espectador numa dessas? Tem que se conformar com pequenos gestos, caretas conflitantes... Se não fosse a voz em "off", dando explicações, imagino que metade daquela informação exagerada se perderia. Prestando muita atenção, até que se percebe, desde o primeiro minuto em que o seu noivo se encontra com a condessa perigosa, a cara de gazela ameaçada de Winona Ryder. Ela acaba ganhando um Oscar, com esse filme.
Como é difícil filmar um bom livro! É uma tradução quase impossível. Neste caso, o diretor foi esmagado, acuado pelos teréns vitorianos que ganharam a partida. Um caso sério!
A parte da comida em si não é tão sensacional. As coisas aparecem, sem muita explicação e pronto. São tão lindas aquelas mesas vitorianas, quentes, excessivas, com seus "épergnes" floridos, enfeitadas de doces, mesmo durante a comida salgada. Engraçado é que a Nova York provinciana, de 1870, já se parecia, no seu entendimento das coisas como objetos de poder e status, com a Nova York dos yuppies de cem anos depois.
E a apresentação da comida é toda "nouvelle", como se Paul Bocuse, ele próprio, tivesse arrumado aqueles pratos. Será? Duvido. A comida era mais amontoadinha e mais farta nos pratos antigos. Repararam que nenhuma das refeições foi servida à francesa e sim à russa? No serviço à russa a refeição é mantida quente, num bufê ou mesa auxiliar, a comida trinchada e arranjada em pratos individuais pelo copeiro é levada pronta a cada convidado. Ensinaram cada coisa complicada a este mafioso do Scorsese! Deve ter ficado de cabeça quente.
Outro filme, ainda há pouco em cartaz, que também trata do nosso convívio com as coisas de todo dia é "O Cheiro do Papaia Verde", vietnamita, delicadíssimo com sua insinuação de que o equilíbrio do mundo depende do equilíbrio das coisas da casa, da ordem dos vasos sobre a mesa, do brilho da madeira encerada, da graça singela de um prato de comida. Eu até acredito nessas coisas.

Texto Anterior: Sem Carnaval; Com Carnaval; Irish Cream
Próximo Texto: Recomendadas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.