São Paulo, sexta-feira, 11 de fevereiro de 1994
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Aspectos polêmicos do Fundo Social de Emergência

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Aprovada, em primeira votação, a emenda constitucional, que realoca transferências de receitas tributárias dentro do processo de revisão determinada pelo Constituinte de 88 no artigo 3º do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), sérios problemas jurídicos e econômicos remanescem.
De início, mister se faz esclarecer que o aumento da participação da União no bolo tributário de sua competência impositiva é algo que já deveria ter ocorrido em 1988. Naquela ocasião, os constituintes aumentaram os encargos da União (com maiores despesas para os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário) e reduziram suas receitas (tiraram-lhe cinco impostos e aproximadamente metade da receita de seus dois principais tributos, ou seja, IPI e Imposto de Renda).
Escrevi para a Folha, cinco meses antes da promulgação da "Constituição Cidadã", que a hiperinflação passaria a ser princípio implícito constitucional, visto que a matemática dos senhores constituintes não se assemelhava àquela ensinada desde os bancos escolares até as pós-graduações das universidades ("A hiperinflação como princípio constitucional", 5/05/88).
Com encargos maiores e menores receitas, à evidência, quem terminaria pagando a insensatez da Assembléia Nacional Constituinte seria o pobre cidadão. A partir de 1988, a Federação Brasileira deixou de caber no PIB, tendo as minhas previsões infelizmente sido corretas.
O fato, todavia, de ser esta realocação o que de melhor possui o Plano FHC –o aumento da carga tributária gerou mais inflação, mais desemprego e mais recessão– não é por si só auspicioso para o mundo do Direito ou para o da economia.
Para o mundo da economia não o é, mais uma vez, cedeu o governo ao corporativismo dos servidores públicos, que apenas admitem desemprego e recessão para os cidadãos que os sustentam, mas que, na crise, não abrem mão de seus privilégios, que denominam de direitos. Como o Brasil é constituído de cidadãos de 1ª e de 2ª categorias, à evidência, os de 1ª não podem dispensar tudo o que consideram "conquistas", devendo a nação procurar sair da crise à custa dos cidadãos de 2ª categoria, que com seus tributos os sustentam. A transigência governamental poder-lhe-á ser fatal.
Os problemas jurídicos não são de fácil solução. Reza o artigo 3º do ADCT que:
"A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral".
Não há, pois, nenhuma possibilidade de ser promulgada a revisão parceladamente, por etapas, de acordo com as conveniências do Poder ou do Congresso. Embora considere a melhor parte do plano FHC a realocação de receitas tributárias, que corrige as injustiças da Constituição Federal de 88, deverá o governo aguardar a promulgação completa da revisão.
Creio que a maioria esmagadora dos constitucionalistas brasileiros não pode abrir mão de suas convicções jurídicas à medida que o artigo 3º faz menção a uma revisão global e não diversas revisões setoriais. A promulgação de uma parte da revisão poderá implicar o encerramento do processo revisional.
O aspecto mais grave, todavia, é o da natureza do Fundo Emergencial. Trata-se de uma emenda para uma situação circunstancial que é o combate a inflação.
Ora, o artigo 3º foi aprovado pelos constituintes de 1988 para que fosse dado perfil final à Constituição, cinco anos depois de sua promulgação. E o constituinte ofertou à futura assembléia revisora uma única oportunidade para corrigir definitivamente os problemas gerados pela Lei Suprema. Em nenhum momento, cuidou o Constituinte de uma revisão para a promulgação de emendas circunstanciais e casuísticas.
Entendo, pois, que o Plano FHC, cuja parte de realocação de recursos tributários considero acertada, deveria ser aprovado como emenda à Constituição, no rito do artigo 60 das Disposições Permanentes, já que materialmente seu conteúdo não pode ser objeto de revisão constitucional.
Creio que os dois aspectos (conteúdo material e procedimento de promulgação), isto é, os aspectos formal e material do plano FHC, devem ser objeto de reflexão daqueles que têm o poder de legislar superiormente (Congresso Nacional Revisional) e o de decidir (Supremo Tribunal Federal).
Teria preferido negociar o Fundo de Emergência com o Congresso em nível de emenda constitucional, com o rito do artigo 60 das Disposições Permanentes, com o que os dois pontos mencionados não seriam obstáculos. Como sou apenas advogado e não tenho a menor vocação política, só me resta agora aguardar a sequência dos acontecimentos, curioso para ver até que ponto a Constituição Federal é uma carta definitiva de garantias e direitos do cidadão e do Estado ou um periódico de grande circulação e tiragens, inclusive, com segundos clichês.

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