São Paulo, sexta-feira, 18 de fevereiro de 1994
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De volta à ditadura Vargas

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Em 10 de julho de 1941, em pleno período da ditadura Vargas, foi editado o Decreto-lei nº 3.415, instituindo a prisão administrativa por 90 dias. No governo Costa e Silva, antes e depois do Ato Institucional nº 5, o então ministro da Fazenda pretendeu aplicar a prisão administrativa por 90 dias contra depositários infiéis do Imposto sobre Produtos Industrializados.
Nas duas vezes, o governo federal foi mal sucedido, tendo a Justiça Federal de São Paulo, o Tribunal Federal de Recursos e o Supremo Tribunal Federal entendido que a prisão administrativa não coadunava com as garantias constitucionais colocadas na Carta Magna Brasileira.
Com a Constituição de l988, a questão ficou ainda mais clara na medida que o artigo 5º, incisos 54, 55 e 57, não permitem a perda de liberdade sem o devido processo legal, sem ampla defesa, sem trânsito em julgado da sentença penal condenatória, salvo as hipóteses expressas na própria Lei Suprema. E estas são apenas aquelas colocadas no inciso 61 do artigo 5º, a saber, a prisão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, após o devido processo legal.
A mera reprodução do inciso 54 bem demonstra a impossibilidade de uma prisão administrativa sem que se tenha absoluta segurança de que o devido processo legal foi adotado e de que o condenado o tenha sido com o exame pormenorizado de todas as provas. Está o inciso 54 assim redigido "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".
A Medida Provisória nº 427, agora editada pelo governo Itamar Franco, implode todas as garantias do cidadão brasileiro, torna a prisão por processo ainda não encerrado na Receita Federal matéria corriqueira, como o próprio secretário da Receita Federal já vem alardeando, quando afirma que pelo menos 1.000 pessoas deverão ter o seu pedido de prisão apresentado, sem trânsito em julgado de qualquer decisão.
Reedita, portanto, o governo federal, no pior estilo da ditadura Vargas, medida provisória que expande ainda mais a sensação de insegurança e que permite confundir os verdadeiros sonegadores com os meros inadimplentes, aqueles contribuintes que só não pagam tributos porque estão absolutamente impossibilitados de o fazer em face da iníqua, confiscatória política tributária do país.
Tendo o Brasil, nas três esferas de governo, a mais alta carga tributária legal do mundo civilizado, muitos dos que não pagam tributos não o fazem porque não têm condições de fazê-lo. Ora, quando a Constituição garante o devido processo legal, o único capaz de distinguir entre o sonegador e o inadimplente, é porque pretende garantir aqueles que sustentam os governantes contra o arbítrio daqueles que são sustentados pelos contribuintes.
A Medida Provisória nº 427 objetiva obter receitas a qualquer custo, mediante a possibilidade de prender qualquer cidadão, sem o trânsito em julgado e sem um exame pormenorizado das provas. Assim, a recente MP afeta a credibilidade do Estado de Direito no Brasil.
Tentativa semelhante já fora feita pelo presidente Fernando Collor, de triste memória, com as Medidas Provisórias 153 e 156, não acatadas pelo Poder Judiciário sob a alegação de que medida provisória não é veículo legislativo para matéria penal. Se naquela época o presidente Collor, tomado da consciência do erro que cometera, adiantou-se à decisão final do Supremo Tribunal Federal revogando as duas MPs, espera-se que o presidente Itamar Franco, homem honesto, tenha o mesmo bom senso e não macule sua imagem com a do ex-presidente Fernando Collor e a do ditador Getúlio Vargas.
O Estado de Direito exige o combate à sonegação, mas exige dos governantes políticas tributárias adequadas, não confiscatórias nem iníquas. Sempre que as políticas são iníquas geram profundo mal-estar e turvam o Estado de Direito. O presidente Itamar Franco precisa reconhecer que o caminho adotado nivela sonegadores e inadimplentes, confunde os confiscados contribuintes com aqueles que nunca pretenderam pagar tributos, retirando seu direito de defesa.
A medida provisória agora editada, além de inconstitucional, é aética e, por esta razão, o presidente poderia, ao revogá-la, garantir ao cidadão seu direito de defesa e, evidentemente, combater os verdadeiros sonegadores com o apoio de todos os brasileiros.
Que sejam punidos os sonegadores, não aqueles que estão em dificuldade exclusivamente por força de uma política tributária que transformou o Brasil no país da mais alta carga tributária do mundo, estimulador portanto da fuga de capitais permanentes -e não especulativos- e, ao mesmo tempo, desestimulador da poupança e do investimento.

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