São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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Itamar não escolheu um bom modelo

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Ouvi vozes e li textos alusivos ao decoro que o presidente da República deve manter e aos efeitos do alegado descumprimento desse dever, em virtude do episódio carnavalesco.
Supondo-se que, com base nesses elementos, um pedido de impedimento fosse levado à frente, o rito seria parecido com o que afastou Fernando Collor. Começaria pela Câmara dos Deputados, a qual tem competência privativa, na forma do artigo 51 da Constituição, para autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração do processo.
Supondo-se mais que o processo fosse instaurado, a competência passaria privativamente ao Senado Federal, nos termos do artigo 52, para processar e julgar o presidente por crime de responsabilidade ou originariamente ao Supremo Tribunal Federal, se se cuidasse de infração penal comum, como está no artigo 102, I, "c", da Carta Magna.
Crime de responsabilidade não houve. O artigo 85 da Constituição define o delito. Envolve atos de maior importância do que bolinar uma senhora com pouca roupa, durante um desfile carnavalesco. Esse ato pode atentar contra o bom gosto extrínseco dos atos presidenciais, mas por certo não atentou contra a Constituição ou o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais. Nem contra a probidade da administração, para ficar em alguns exemplos do que vem no referido artigo 85. O bom gosto intrínseco é outra questão, estranha ao direito.
Dir-se-á que o senhor Itamar Franco não atentou para as graves responsabilidades inerentes ao exercício do cargo, expondo-se ao ridículo, quando os homens de idade avançada se entusiasmam diante de moçoilas de porte exuberante. Antigamente os caipiras diziam que "burro véio gosta de capim novo..." Não sei se a expressão se aplica ao caso, mas talvez seja esse o ângulo pelo qual a questão possa ser vista. Mesmo que o seja, nada tem com as competências privativas do presidente, as quais, aliás, vêm definidas no artigo 84 da Carta de 88. Incluem a direção superior da administração federal, o que por certo não diz respeito a bailes ou desfiles carnavalescos, sem que estes, contudo, sejam necessariamente excluídos dos gostos presidenciais.
A Carta tem uma única disposição a respeito das relações que o presidente da República tem competência para manter: são com Estados estrangeiros, o que lhe permite receber credenciais de seus representantes, geralmente do sexo masculino. Uma embaixadora, e além de tudo bonita, como a da Polônia, é tão rara quanto a inflação decrescente.
Cabe, pois, indagar se houve delito comum. Em que teria consistido? Como se sabe, qualquer conduta para ser considerada delituosa é preciso que esteja tipificada (isto é, descrita) num texto legal, que puna essa conduta. Li e ouvi que seria ato obceno, previsto pelo artigo 233 do Código Penal, o qual consiste em ofender o pudor médio, em lugar público, mediante ação do agente com caráter sexual. Mas nem assim houve crime, porque o dolo é inexistente. Nos desfiles de carnaval, a cada segundo, há milhares de atos que -praticados fora dali- seriam obcenos. Alí integram a normalidade das liberações momescas, que tendem ao infinito. A questão de local e oportunidade é juridicamente relevante. Um fio dental na praça da Sé dá cadeia; no Guarujá, passa despercebido.
Vamos esquecer o episódio. Temos coisa mais séria para pensar. Afinal a senhora (que o noticiário refere pela curiosa designação de modelo) teve seu direito aos 15 minutos de notoriedade. Foi muito. E não foi um bom modelo para o presidente.

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