São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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Salários com sal

Salário, como diz o nome, designava os pagamentos em sal, especiaria ao mesmo tempo preciosa e crucial para a sobrevivência. Desde a origem, portanto, salários estão associados à preservação da vida de cada indivíduo e das comunidades. No Brasil, tamanha é a deterioração do poder aquisitivo dos assalariados que se foi perdendo essa associação entre salário e vida digna. Quando se trata, como na economia brasileira hoje, de reinventar a moeda, novamente a questão dos salários torna-se crucial para o sucesso da estabilização.
Rapidamente o debate passou a girar em torno da oposição entre conversão do salário mínimo pelo seu valor de pico ou por algum cálculo de valor médio. A Fazenda, preocupada com o impacto do mínimo sobre a Previdência e sobre as finanças públicas, defende um patamar para o salário mínimo equivalente a cerca de US$ 65 no momento da conversão. O ministério do Trabalho, sob o argumento de que a fixação do mínimo é uma decisão política e não apenas técnica, defende como ponto de partida um valor da ordem de US$ 85 (embora insista ainda no ideal de US$ 100). É importante lembrar que a palavra final estará nas mãos do mesmo Congresso que, no passado, tendeu a aprovar regras salariais sem qualquer compromisso com os esforços de austeridade do Executivo.
Do ponto de vista econômico é impossível ignorar as dificuldades de embutir, num plano de estabilização rápida, medidas de distribuição de renda. Na prática, quanto maior o aumento dos salários reais no ponto de partida, maior a tendência dos formadores de preços de buscarem a recomposição das margens de lucro anteriores.
Essa tendência ou propensão a recompor a margem de lucro anterior é uma forma de inércia inflacionária. Ela repõe a espiral preços-salários, mecanismo de perpetuação e realimentação da inflação. Não se trata portanto de acreditar, como muitos no passado, que os salários de algum modo "causam" a inflação. Há na realidade um círculo vicioso que não apenas perpetua a inflação como condiciona os comportamentos e gera uma arraigada cultura inflacionária. A vítima permanente são os assalariados.
Há dificuldades inegáveis em nome das quais o problema deve ser examinado com racionalidade e sensatez. Mas seria também insensato ignorar que os salários, em particular o salário mínimo, foram significativamente corroídos nos últimos anos. Se é fato que um plano de estabilização não se confunde com um plano de distribuição de renda, nada obriga a descartar o compromisso distributivo da agenda de políticas do governo.
Conseguida a estabilidade dos preços, a volta do crescimento, vale dizer, dos investimentos, pode até mesmo ser estimulada por uma política que restaure a participação dos salários na renda nacional. Nesse sentido contribuiria, por exemplo, uma estratégia de recuperação do salário mínimo, negociada e anunciada oficialmente desde já.
Num contexto de estabilidade e crescimento, aliás, a memória da espiral preços-salários perde relevância. Ao contrário do círculo vicioso da inflação, pode-se alcançar o círculo virtuoso de mercados crescentes. Torna-se então possível fazer o que nunca se tentou na economia brasileira, promover o crescimento e ao mesmo tempo procurar distribuir a renda.
Não se deveria reduzir o debate sobre o salário mínimo a um duelo entre advogados da média e defensores do pico. Se há uma restrição orçamentária, daí deve partir o critério primordial para a ação contra a inflação no futuro imediato. Restaurada a moeda, poderão ser restaurados os salários pagos nessa moeda. Voltarão então a ser sinônimo de sobrevivência digna, individual e coletiva, "cum grano salis".

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