São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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Ócio bem remunerado

A ausência em massa de congressistas nos dias úteis que se sucederam ao Carnaval é indignante, para dizer o menos. Fica evidente que todo o clamor da sociedade pela ética continua sistematicamente desprezado pela grande maioria dos parlamentares (na sexta-feira, apenas 49 dos 584 congressistas compareceram ao Parlamento).
A indignação cresce quando se sabe que o calendário de trabalho de deputados e senadores é muito mais suave do que o dos demais assalariados. Estes têm um mês de férias por ano; já os congressistas gozam do triplo de tempo de ócio (não trabalham em janeiro, julho e metade de fevereiro e dezembro).
O pior de tudo é que não se trata de ausências circunstanciais ou episódicas, mas de uma deformação cultural. É a única conclusão que se pode tirar das propostas lançadas a partir da constatação de que as seguidas ausências estavam dificultando tanto a votação da revisão constitucional quanto o processo de cassação dos parlamentares acusados de falta de decoro pelo relatório da CPI do Orçamento.
O próprio presidente da Câmara, Inocêncio de Oliveira (PFL-PE) –que, pelo cargo, deve conhecer bem seus pares–, sugere a criação do que chamou de "bancada do quórum". Cada partido indicaria 20% dos seus representantes para comparecerem ao Congresso e, assim, assegurarem quórum.
Essa fórmula, aparentemente engenhosa, significa conceder habeas corpus para que 80% dos parlamentares deixem de trabalhar, pura e simplesmente. Tente-se transpor a situação para o setor privado: alguém que não esteja completamente enlouquecido poderia imaginar uma empresa em que apenas 20% dos funcionários tivessem que trabalhar, mas todos recebessem igualmente o salário no fim do mês, sem nenhum tipo de desconto?
Outra proposta que oficializa a folgança bem remunerada é a do deputado Adylson Motta (PPR-RS): em vez de recesso de três meses ao ano, cada parlamentar trabalharia 20 dias por mês e ficaria 10 em seu Estado. Basta fazer a conta (10 dias vezes 12 meses por ano) para se chegar à conclusão de que, por essa fórmula, os congressistas teriam quatro e não três meses de folga. Alega-se que, ao ficar em seu Estado, o parlamentar estaria fazendo trabalho político, o que é legítimo. Mas quem é que controla se ele de fato realiza esse trabalho?
Há, na prática, maneiras eficazes de pelo menos reduzir o absenteísmo sistemático dos parlamentares: descontos pesados nos salários dos faltosos ou a cassação dos menos assíduos (recursos previstos até, mas raramente aplicados). Mas talvez seja a cassação, pelo voto do eleitorado, dos parlamentares faltosos que vá levar, por fim, à renovação de uma cultura política viciada e que se torna crescentemente acintosa para uma sociedade que clama por mais ética na política.

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