São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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Crise de identidade

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Como qualquer ser humano, devo ter desafetos que, uns mais, outros menos, torcem lealmente pela minha desdita. E eis que vos dou a boa nova: estou em péssima fase, curtindo gravíssima crise de identidade. Esclareço desde já que não se trata de uma linha auxiliar da crise de identidade que assola o PT e outros partidos políticos. Tampouco se trata de uma crise que afete minha identidade interior –que esta vai bem, dentro do possível, embora mal remunerada.
O diabo é que me roubaram todos os documentos no aeroporto de Genéve, onde fiz uma escala para Roma. Fui cumprimentar a amiga que me esperava, quando olhei minha sacola não havia sacola. Não lamentei a perda da escova de dentes –a Suíça produz excelentes escovas para diversos usos e serventias. Peças miúdas de roupa também não me fariam falta. Mas de uma assentada fiquei na extravagante situação de existir não existindo, ou pior, existindo sem existir. Cartões de crédito internacional, seguro de saúde, até mesmo CPF e uma velhíssima carteira que me dava direito a uma cadeira perpétua no Estádio Mário Filho –tudo me foi roubado.
Evidente que me virei. Meu salvo-conduto me foi concedido na hora, no posto policial do aeroporto. Já as carteiras de identidade e motorista, que eu me virasse no Brasil. É o que tenho feito nesse Rio de 42º, indo e vindo por repartições imundas, mal aparelhadas. A duras penas, já consegui existir para o fisco, recuperei o CPF com relativa rapidez, viva o dr. Osíris. Agora, enfrentar a burocracia do Detran e do Félix Pacheco é mais trabalhoso (e inútil) do que uma expedição às Ilhas Papuas. Falta-me ainda aquele cartão plastificado que prova uma coisa da qual sempre duvidei: eu sou eu mesmo.
Ontem fui chamado a um posto sórdido para obter a próxima carteira. O funcionário me besuntou os dedos com uma tinta malcheirosa, borrou uns papéis com meus borrados dedos e mandou-me embora. Perguntei onde podia lavar a mão. Ele me indicou a pia. Não havia água. Supliquei uma alternativa. Ele gritou com má vontade: "Pensa que isso aqui é a Suíça?"

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