São Paulo, quarta-feira, 23 de fevereiro de 1994
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Visconti cultivou bela fruta com sabor ácido

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"O Leopardo", de Visconti –agora em cartaz na sua versão completa (no Cinesesc)– já deixou de ser um filme, ótimo filme aliás, para tornar-se um fetiche.
Assiste-se a ele como a um rito: solenemente. E assim como num rito, espera-se encontrar no filme aquilo que já se sabia existir. Trata-se de uma missa onde, em vez do "credo", do "corações ao alto", espera-se a famosa frase: "É preciso que alguma coisa mude para que tudo permaneça como está".
A filmagem de Visconti tem uma solenidade, uma compostura, um rigor que equivalem à própria atitude de solenidade, de compostura e de rigor do público que acorre ao Cinesesc. Ninguém foi ver o filme por acaso. Foi porque sabe: a um dado momento, será pronunciada a frase: "É preciso que alguma coisa mude para que tudo permaneça como está".
"O Leopardo" tem a pompa, a unção, a soberba, o aparato dos grandes rituais católicos pré-Vaticano 2.º. A missa era falada em latim. Do mesmo modo, prefere-se dizer "Il Gattopardo" em vez de "O Leopardo".
O filme de Visconti é belíssimo, grandioso, marxista, episcopal.
O aspecto de manual sociológico é bem claro em "O Leopardo". Burt Lancaster é um nobre siciliano, ameaçado de perder terras e privilégios nas convulsões políticas vividas pela Itália na década de 1860. Vassalo dos Bourbon, que reinavam na Sicília, seu dever de sangue teria de obrigá-lo, em tese, a ser contra a unificação da Itália. Mas o sobrinho, Alain Delon, pronuncia a frase: "É preciso que alguma coisa mude etc.".
O velho príncipe se convence que é melhor apoiar a luta pela unificação, rompendo com os Bourbon e apoiando um novo rei, Vittorio Emannuele. Contra o perigo dos republicanos e radicais de esquerda, melhor uma monarquia, mesmo que isso signifique trair os Bourbon em favor de outra casa real.
Moral da história: a nobreza, assim como a burguesia, faz qualquer negócio para manter seus privilégios. O velho príncipe, por motivos de dinheiro, arranja o casamento de Alain Delon com a filha burguesa do prefeito. Posa de liberal, de avançado até, aceitando que alguém sem sangue azul seja admitido na família.
O filme é, desse ponto de vista, simples como um manual. Mostra que na Itália, assim como na Alemanha, ocorreu uma pseudo-revolução burguesa. Ou seja, os burgueses (prefeito) e nobres (Burt Lancaster) se aliaram contra o proletariado. Ao passo que na revolução burguesa clássica, a de 1789 na França, os burgueses se aliaram ao proletariado contra os nobres.
O príncipe Salina tem de engolir as vulgaridades e o "nouveau-richismo" de Dom Calogero, o prefeito plebeu. Dom Calogero acha lindo ver sua filha esposar alguém de estirpe. Todos se curvam, mais reverentes do que nunca, à liberalidade e à falta de preconceito do príncipe.
"O Leopardo" representa assim, com clareza de manual sociológico, a aliança entre nobreza e burguesia no processo de unificação da Itália.
Isso envolve uma série de problemas estéticos, que Visconti resolve bem até certo ponto.
O principal problema é que, para contar a história do filme, Visconti (e o romancista em que ele se baseou, Lampedusa) têm de pressupor de seus personagens uma total consciência a respeito do que se passava. Como representantes de interesse de classe, o príncipe, seu sobrinho, o prefeito não hesitam nenhum momento naquilo que maquiavelicamente devem fazer. São, precisamente, classes personificadas e não personagens contraditórios. Neste filme marxista, ninguém é vitimado pelo fenômeno marxista da "falsa consciência". Exceto a mulher do príncipe, que chora e se debate ao ver arranjado o casamento entre o nobre Alain Delon e a reles burguesa Claudia Cardinale.
A frase "para que tudo permaneça como está é preciso que alguma coisa mude" seria, a rigor, cínica e realista demais para ser pronunciada por personagens que nunca leram Marx, Maquiavel ou Gramsci.
É como se todos os personagens estivessem plenamente cônscios do movimento histórico.
Por isso mesmo, o filme faz sucesso entre o público de esquerda, que quer ver encenado aquilo que aprendeu em Gramsci, Marx e Maquiavel. Público conservador, que ouve a repetição da fórmula "é preciso que alguma coisa mude etc." para em seguida dizer: "é isso aí... olha o Brasil...", e diz "ah-ah!" sem indignação, no conforto de reconhecer filmadas as coisas como sempre foram.
Mas Visconti é mais esteta do que um manual de sociologia e soube acoplar seu verismo marxista a uma profundidade psicológica e humana que fazem de "O Leopardo" algo mais do que a demonstração de uma frase feita.
Duas coisas são importantes deste ponto de vista. Primeira, o fato de que o príncipe, agindo exemplarmente segundo seus interesses, não deixa de sentir nojo diante do que fez. Acha ignóbeis, vulgares, aqueles a quem teve de se aliar.
O segundo ponto é que a aliança não se fez apenas entre interesses materiais. A burguesinha Claudia Cardinale é linda. Não apenas rica, ela é inteligente. Natural que o nobre Alain Delon, cínico e romântico ao mesmo tempo, se apaixone por ela.
Ocorre então um casamento que é tanto de amor quanto de interesse. Tudo o que havia de pedagogismo marxista cede, então, à realidade psicológica. Isso está certamente no romance de Lampedusa. Mas, no filme, há uma cena em que a contradição se traduz com arte cinematográfica.
No baile de noivado, Alain Delon e Claudia Cardinale se retiram para um salão deserto. Beijam-se com paixão. De repente, o romance pessoal se coletiviza. Entram em cena nobres, militares e burgueses, numa dança de roda que os envolve em círculo, até que os dois, alegremente, dão-se as mãos e entram na quadrilha.
Puro cinema, e não é à toa que as sutilezas de Visconti, na filmagem desse gigantesco baile de noivado, são elogiadas pela crítica.
Outra coisa: o rosto dos personagens. Burt Lancaster é a nobreza e a amargura em pessoa. Claudia Cardinale é sangue novo, plebeu e puro, fluindo de jovem beleza, na casa. Alain Delon é um Collor melhorado. Dom Ciccio, o último bourbonista, o primeiro fascista talvez (Serge Reggiani) é o pobre coitado que não se conforma com a rendição do príncipe aos novos tempos.
Mas seria o caso de perguntar o que prevalece, afinal, neste filme. O manual marxista e sociológico é veraz, mas por si só conduziria a uma insuficiência estética. A fascinação burguesa com os cenários, as roupas, a música, que "O Leopardo" provoca, é superficial, hollywoodiana, nos leva a dizer apenas "que belo filme!". Só podemos dizer "que grande filme" assumindo a perspectiva aristocrática de Burt Lancaster.
Mistura de cinismo interesseiro e de filosofia da história –"é preciso que alguma coisa mude etc. etc.", de pragmatismo burguês e de intimidação aristocrática, a figura do príncipe se confunde com o filme. É mais uma questão de amargura que de marxismo o que move Visconti. Nobre ele mesmo, realista sem dúvida, esteta acima de tudo, fez de "O Leopardo" uma obra não de denúncia plebéia, mas de revelação desesperada.
Melhor não ir ver "O Leopardo" como se fosse uma missa. Melhor não ir ver "O Leopardo" como confirmação do que acontece no Brasil –pacto das elites, conciliação etc.– : melhor vê-lo com acidez.
Assim como, ao morder uma fruta, não encontramos seu sabor conhecido, seu sumo doce –e em matéria de sabor conhecido "O Leopardo oferece muito–, mas aquela adstringência, aquele "pegar na boca", aquela cica, é preciso ver o que faz de uma obra de arte algo de ainda inquietante, de azedo, de amargo, de ríspido e vertiginoso. "O Leopardo" é um baile feliz e triste, irreal e verdadeiro, onde morte, desejo, amargura, vida e sobrevivência de classe se dão as mãos, numa dança de roda difícl de traduzir num manual qualquer.

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