São Paulo, quinta-feira, 24 de fevereiro de 1994
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'Hoffa' exalta as táticas do melodrama

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Hoffa" é um melodrama. No melhor da tradição, mas com algo a mais. Desde o excesso do roteiro armado em flashback por David Mamet até o excesso do uso da música dramática de David Newman e dos movimentos de grua. O diretor-ator Danny DeVito bebe na fonte de Sergio Leone, por exemplo, com total desenvoltura para contar a história do militante sindicalista James Hoffa, desaparecido misteriosamente, como um herói americano.
A opção pelo melodrama é proposital. É um recurso frequente em Hollywood para transformar personalidades em mito. Jimmy Hoffa fez de tudo para manter de pé o sindicato dos caminhoneiros ("teamsters"), sem grandes escrúpulos sobre a origem do dinheiro de que precisava para sua causa. Para fazer dele um mito americano, DeVito tem que reforçar o lado pessoal, o homem Hoffa, imbuído de valores humanos inquestionáveis. É essa humanidade que justifica os meios a que Hoffa recorre para alcançar seus objetivos de justiça trabalhista.
O lado humano de Hoffa (Jack Nicholson) é reforçado pela ótica da narrativa em flashback (as lembranças de seu melhor amigo e escudeiro, encarnado por Danny DeVito). Há uma habilidade inquestionável de David Mamet em narrar a história do sindicalista, envolvido com gângsters e utilizando-se dos métodos menos lícitos em nome de um pouco mais de justiça social, pelos olhos da amizade. É específico do gênero e típico de uma sensibilidade americana desviar os acontecimentos sociais –e justificá-los– pela dimensão sentimental dos personagens.
Mamet e DeVito sabem tirar todos os efeitos melodramáticos possíveis da glorificação da personalidade, da exaltação e do reconhecimento dos valores do indivíduo em situações públicas. Sabem representar o mundo dos trabalhadores sem reduzi-los a uma massa social.
Tanto o roteirista como o cineasta, no entanto, têm consciência do que estão fazendo e procuram ao mesmo tempo manter uma relação mais distanciada e reflexiva com o melodrama, criando pequenas trapaças, armadilhas, em situações que o gênero costuma tratar com uma ingenuidade crente.
Há uma sequência emblemática desse tratamento: Hoffa vê uma jovem mãe com o filho pequeno durante o piquete da greve dos ferroviários. Há confusão. A polícia reage. A mãe e o menino são separados aos gritos no meio da multidão. O menino chorando sozinho vê os homens se arrebentando a sua volta. Há várias mortes. Na cena seguinte, durante o velório dos mortos, Hoffa vê o menino de novo, sentado sozinho numa cadeira, com a cabeça baixa. Ele se levanta e vai em direção ao menino, a imagem o acompanha em câmera lenta e com música ao fundo. Quando já está quase ao lado da criança, sempre em câmera lenta, Hoffa vê finalmente a mãe, que pensava estar morta, surgir com um prato de comida que tinha ido buscar para o filho. Os dois se encaram e Hoffa passa por ela sem dizer uma palavra.
Com essa relação reflexiva sobre as táticas habituais do melodrama, aparentemente distanciando-se dele, "Hoffa" acaba potencializando as emoções. Tentando seguir os passos de Sergio Leone, Mamet e DeVito realizaram um dos mais recentes exemplos do cinema pós-melodramático.

Vídeo: Hoffa
Direção: Danny DeVito
Elenco: Jack Nicholson e Danny DeVito
\Distribuidora: Abril Vídeo (tel. 011/832-1555 ramal 226)

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