São Paulo, quinta-feira, 24 de fevereiro de 1994
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Caso Lílian reitera visão de artistas como delinquentes

JUCA DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A honra nacional está provisoriamente alvejada com anil e quarada ao sol deste verão esturricante. Era apenas a Lílian Ramos. E agora, graças a Deus, estamos informados pela imprensa de que Lílian Ramos não passa de atriz de modesta competência. Uma atriz que, embora tivesse participado de três ou quatro produções, ainda não explodiu.
E modelo. Não uma supermodelo, dessas com estágio no Japão. Uma modelo das nossas, sem grife pessoal. Um competente serviço de informações, assessorado por generosas coleguinhas da Lílian, tratou de completar-lhe a biografia. Segundo se informa, é também menina de programa. Até o cachê, à falta de uma tablita oficial, andou sendo cotejado.
E como riram nesta Quaresma! O puritanismo caboclo atingiu índices jamais sonhados pela Companhia de Jesus. Deslavada hipocrisia. Qualquer sátiro trôpego e babão seria fisgado pelo opulento destaque da Viradouro e logo se comportaria como borracheiro de beira de estrada. Até nossa economia de fim de feira foi deixada de lado por algumas horas.
Mas era apenas a Lílian Ramos. E o que é lindo nesse patético ensaio de opereta é que a Lílian Ramos, mais por ingenuidade que por escandalosa beleza, acabou pondo a nu a hipocrisia nacional. A malcheirosa ética de uma CPI carunchada por conchavos de todos os talhes e feitios, deixou no chinelo o megaflagrante do camarote presidencial.
Os babões da nossa política e pregadores de fundo de quintal ainda não identificaram o véu diáfano da indecente postura moral e política que os separa da calcinha da moça, que tanto os excitou! Isso para não citar o seu (deles) exibicionismo sexista em revistas especializadas, o que, a julgar pelo quorum, os mantêm mais na cama que na Câmara.
Sobre a atriz Lílian Ramos, hoje atirada com rancorosa volúpia à execração pública, seria conveniente que nós, atores e atrizes, meditássemos sobre quem somos e qual a nossa função social.
Seria didático um pingo de reflexão sobre nossa história recente. Ainda outro dia fomos expulsos dos altares das igrejas, dos adros, das praças públicas e das cidades. E nos encontramos nas encruzilhadas com os delinquentes, as prostitutas e os ladrões de galinha.
Mas não faz tanto tempo assim. Ainda hoje somos –é bom que se reflita– marginais. Geniais atrizes que ainda militam com sucesso em nosso vídeo chegaram a ser qualificadas profissionalmente como prostitutas em suas carteiras profissionais. Parte considerável da classe dominante nos considera um bando de prostitutas, homossexuais e drogados.
Não por tais razões, mas por preconceito. No que me diz respeito, pessoalmente, nada tenho contra prostitutas, nem contra homossexuais e nem contra drogados.
Somos assim discriminados porque há entre nós e a classe dominante algo que nos separa e nos torna inconciliáveis através dos séculos e séculos, até que o fenômeno de magia do palco esteja morto, ou seja, nunca.
O inconciliável entre nós, o que nos ilumina e anima, é que nós queremos que a sociedade avance e eles preferem que ela fique como está. Em nós habita a volúpia e o delírio enquanto que a estagnação nos mata e nos torna vestais de um imenso sepulcro. Não creio que a informação que passo agora possa entristecer uns poucos colegas desavisados: não há vestais entre nós. Como muito menos há entre os do lado de lá.
É isto que nos torna inconformados, prenhes de paixão e criativos, menos predadores e mais afetivos e, principalmente, –algo que a espécie humana desgraçadamente perdeu– mais solidários.
É esta solidariedade de artista que eu divido com você, Lílian Ramos, atriz, aspirante ao palco, minha colega e a quem, infelizmente, conheço pouco. Eu e todos os artistas, aqueles que sabem que somos todos uma tribo, desesperados em busca de um sonho em que valha a pena acreditar outra vez!

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