São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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O ovo; O Ovo, por dentro e por fora

SIMIAS DE RODES; JOSÉ PAULO PAES
DA FÊMEA CANORA

O OVO
Acolhe
este novo urdume que, animosa
Tirando-o de sob as asas maternas, o ruidoso
e mandou que, de metro de um só pé, crescesse em número
e seguiu de pronto, desde cima, o declive dos pés erradios
tão rápido, nisso, quanto as pernas velozes dos filhotes de gamo
e faz vencer, impetuosos, as colinas no rastro da sua nutriz querida,
até que, de dentro de seu covil, uma fera cruel, ao eco balido, pule
mãe, e lhes saia célere no encalço pelos montes boscosos recobertos de neve.
Assim também o renomado deus instiga os pés rápidos da canção a ritmos complexos.
balindo por montes de rico pasto e grutas de ninfas de fino tornozelo
que imortal desejo impela, precípites, para a ansiada teta da mãe
para bater, atrás deles, a vária e concorda ária das Piérides
até o auge de dez pés, respeitando a boa ordem dos ritmos,
arauto dos deuses, Hermes, jogou-se à tribo dos mortais,
e pura, ela compôs na dor estrídula do parto.
benévolo.
\<BR:0.0152778,0,0.0152778,0.0152778,0,0,128,0.0277778,0.0277778,0.0277778,0.0277778,239,239,239\>SIMIAS DE RODES (Tradução direta do grego por José Paulo Paes)

O ovo por dentro e por fora
O poema 'O OVO', de Simias de Rodes, é um dos cinco remanescentes do poema figurado alexandrino
JOSÉ PAULO PAES
Um poeta grego do seculo 20, Kostis Palamás, perguntou-se num dos seus epigramas: "Monoteista. mas a que deus te apegaras então/ adorador do Olimpo, o das artes ou da ação? Vais viver com a Grécia, a que o tempo não traz abalo ou risco/ de Homero, ou com a Ilíada de Alexandre, ..." De fato, o imenso império que a ambição guerreira de Alexandre Magno conseguiu criar durou, metaforicamente, pouco mais que a luz de um corisco. Logo depois de sua morte, foi loteado em vários Estados autônomos por seus antigos generais. Um deles, Ptolomeu 1º, proclamou-se rei do Egito e fez de Alexandria, se não a capital do universo, como sonhara seu fundador, pelo menos o centro cultural do vasto mundo helenístico.
Centro no qual se desenvolveu, a partir de então, um tipo de culura que, diferentemente da época clássica, não tinha mais nas virtudes cívicas o seu ponto de referência. A cultura Alexandrina foi, por assim dizer, uma cultura privativa, de gabinete, produzida, de um lado, por poetas cujas refinadas, amiúde obscuras criações, se endereçavam a uma minoria de conhecedores, e, de outro lado, por eruditos fechados nas suas bibliotecas, a quem pouco interessava o que se estava passando fora delas.
E quanta coisa não se estava passando. C.A. Trypánis chama a atenção para o paradoxo de, na época alexandrina, os urbanistas planejarem novas e vastas cidades, os arquitetos construírem templos e palácios imponentes, os pintores e escultores se voltarem para figuras e temas monumentais, enquanto os poetas se compraziam na composição de obras o mais das vezes breves, lavradas com finura de miniaturistas, onde se patenteava seu gosto pela experimentação formal, pelas palavras arcaicas, pelas alusões eruditas, pelos dialetos literários, pelos metros intrincados e variados. Gosto que ficou conhecido da posteridade como tipícamente "alexandrino", tomando então o adjetivo um sentido pejorativo, de algo artificial, rebuscado e, sobretudo, decadente.
O refinamento da poesia alexandrina iria culminar na "technopaegnia", que quer dizer "jogo, brincadeira ou diversão de arte". Era a técnica de compor, usando versos de comprimentos desiguais, poemas cuja configuração na página imitasse o contorno do objeto neles tematizado.Essa técnica passou para a poesia latina com a designação de "carmem figuratum" -poema figurado ou emblemático- alcançou certa popularidade na Renascença, entrou pelo Barroco a dentro, foi estilizada pelos neoclássicos como manifestação de "false wit", e teve um avatar moderno nos experimentos tipográficos dos futuristas e nos caligramas de Guilherme Apollinaire.
Antes de entrarmos no exame de seu conteúdo, é de justiça sublinhar que o caráter figurado ou emblemático desse poema é fruto menos de um rebuscamento gratuito e superficial do que de um entranhado e bem-sucedido empenho de isomorfia -isto é, de ligar forma e conteúdo poemáticos por nexos consubstancias, a forma sendo a imagem visual do conteúdo, o qual, por sua vez, é o espírito que o vivifica. No próprio ato de ler "O Ovo", percebe-se lhe a consubstancialidade. Ele não pode ser lido linearmente, como um texto comum: tem de ter lido de maneira alternada. Isto é, depois do primeiro verso, leia-se, não o segundo, mas o último; depois do segundo não o terceiro, mas o penúltimo, e assim por diante. A leitura faz-se portanto do alto e de baixo para o centro, numa espécie de percurso gestaltiano da configuração do ovalóide. Sobre tal percepção gestáltica do oval, incutida num pano de fundo pela mecânica da leitura, é que se vai reconstituir a sequência linearmente gramatical do sentido: "Acolhe benévolo, da fêmea canora do rouxinol dórico, este novo urdume que, animosa e pura ela compôs na dor estrídula do parto. Tirando-o de sob as asas maternas, o ruidoso arauto dos deuses, Hermes, jogou-o à tribo dos mortais e mandou que, de metro de um só pé, crescesse em número até o auge de dez pés, respeitando a boa ordem dos ritmos, e seguiu de pronto, desde cima, o declive dos pés erradios para bater, atrás deles, a vária e concorde ària das Piérides, tão rápido, nisso, quanto as pernas velozes dos filhotes de gamo que imortal desejo impele, precípites, para a ansiada teta da mãe e faz vencer, impetuosos, as colinas no rastro de sua querida nutriz, balindo por montes de rico pasto e grutas de ninfas de fino tornozelo, até que, de dentro do seu covil, uma fera cruel, ao eco do balido, pule do chão de pedra pronta a pegar alguma das crias descuidosas da mosqueada mãe e lhes saia célere no encalço pelos montes boscosos recobertos de neve. Assim também o renomado deus instiga os pés rápidos da canção e ritmos complexos."
Como se percebe, o argumento de "O Ovo" tem seu ponto de partida numa sinédoque: o efeito assume metaforicamente o ser da causa. Vale dizer: o trilo (dor estridula) do rouxinol-fêmea ao desovar converte-se ele próprio em ovo. Num ovo-som, ou melhor dizendo, num ovo-metro, não natural como o ovo palpável, mas artificial, conforme dá a entender a palavra "urdume" que o designa, tomada de empréstimo à arte da tecelagem -e todo poema é um artefato, uma coisa feita de palavras postas em metro. Para os gregos, que não usavam rima, o metro ou ritmo regular era a característica "formal" mais saliente da poesia, embora Aristóteles advertisse, na "Poética", que por si só ele não era condição suficiente de "poeticidade".
Dado o seu papel inaugural (ovo = principio, origem), o ovo tematizando o poema tinha um único pé métrico. Só depois de doado aos homens por Hermes é que, por ordem deste, vai crescer até o máximo de dez pés, medida do verso mais longo, o verso central do poema ("Assim também o renomado deus" etc).
Pode parecer estranho a doação da poesia à humanidade ter sido feita por Hermes, deus da adivinhação, dos viajantes, dos comerciantes e dos ladrões, e não por Apolo, deus da inspiração e condutor das Musas, as quais tinham um de seus principais lugares de culto em Pieria, perto do monte Olimpo, donde a designação de "Pierides" que lhes é dada a certa altura do poema de Simias. Explica-se essa postergação de Apolo pelo fato de Hermes tê-lo precedido como protetor da literatura e das artes tanto assim que foi o inventor da lira, mais tarde por ele dada a Apolo. Ademais, por sua função de mensageiro dos deuses, Hermes era muito célere. Célere como as pernas dos "filhotes de gamo" perseguidos a que "O Ovo" faz uma referência metafórica, comparando-lhes a rapidez, e a do próprio Hermes instigador do crescimento do ovo métrico, com os "pés rápidos da canção".
Entenda-se "canção", quase excusava dizer, como sinônimo de poesia. Ou melhor, da arte da poesia, cujo longo percurso histórico "O Ovo" descreve miticamente, desde o metro de um só pé das toadas mais primitivas -imposto, como sugere Herbert Read, pelo bater do pés no chão durante as danças tribais - até os "ritmos complexos" da civilizadíssima poesia alexandrina, exemplificada no longo verso mediano do poema de Simias. Nesse verso, a multiplicação dos pés métricos, acompanhando metafórica e ritmicamente o tropel dos casos dos pequenos gamos perseguidos pela fera, figura isomorficamente o desenvolvimento da arte da poesia, das origens até o presente alexandrino. Mas, num eterno vaivém, a configuração ovalada do poema nos envia de volta ao ovo do começo, pois na poesia como na vida não há começo nem fim. Fim é o recomeço e recomeço fim, no ciclo ad ovo da eternidade, ab aeternam.

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