São Paulo, segunda-feira, 28 de fevereiro de 1994
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Sucessão emaranhada

FLORESTAN FERNANDES

As moscas azuis turvam o horizonte político. Ninguém sabe mais o que há por trás das siglas dos partidos, e as exigências de "programas de governo" confundem-se com ambições pessoais.
As elites no poder (na economia, na sociedade civil, nas instituições-chave, no governo) gritam por clareza e andam com os nervos à flor da pele. Para não exibir suas rachaduras e contradições, fazem das tripas coração e aceitariam o diabo como candidato, desde que ele as escoltasse ao reino encantado da iniciativa privada, agora remando no barco da "modernização" (expropriação privada do público) e do "neoliberalismo" (ideologia e prática da exclusão dos pobres e dos humildes pela via legal).
Ressurgem os verdadeiros ancestrais dos hominídeos –os cônsules civis da ditadura, articulando acordos para bloquear a ascensão da plebe, simbolizada na candidatura Lula. Reaparecem os filhos pródigos dos grandes partidos, como vestais de passado tenebroso. Brigam entre si as figuras mais ilustres e respeitadas do "partido do governo", identificadas com a salvação da ordem à custa de fincarem suas estacas no "centro", estraçalhando suas bandeiras social-democráticas.
É uma pena que Machado de Assis esteja morto. Sua ironia ferina ajudaria os brasileiros a conhecer melhor o que vai por baixo e por dentro dos hospedeiros das moscas azuis.
Nesse conjunto sombrio, só o PT, descrito como arcaico e pré-histórico, com seus aliados de esquerdas ainda mais malsinados, não sucumbe aos filtros mágicos no poder. Olha e segue para a frente. Questiona a sociedade civil, ordenada a partir do tope; repele a cultura vazia esclarecida, que não ousa mudar se não para fortalecer privilégios e aparências enganadoras; repudia o Estado fiscal, que canaliza a riqueza pública forjada à base de impostos arbitrários e coloniais para os que mandam.
As críticas do PT, vindas de baixo e com a voz do povo ao seu lado, não encontram respostas políticas. Elas exigiriam uma revolução nos costumes e na inércia política dos de cima. A começar por um projeto arrojado e coerente de uma das maiores e mais complexas "nações emergentes" do universo global... Por isso, os caluniadores esgrimem palavras emblemáticas e provocações burlescas, atribuindo ao temido adversário aquilo que foi as entranhas, a consciência e os sentimentos deles próprios, que confundem governar com voluntarismo autocrático, entendendo-se por meio das célebres conciliações conservantistas.
O Brasil possui ou não futuro promissor? É claro que possui. Impõe-se, contudo, primeiro limpar as cavalariças ou castigar os vendilhões do templo.
Não adianta esconder a natureza de elites que se formaram sob a égide da colonização e buscam por enaltecer-se por uma combinação esdrúxula de patrimonialismo carcomido e de imperialismo neomonopolista.
Os lucros fluem. Caminham, no entanto, na direção errada. Saem do esfolamento dos assalariados e dos famintos. E sobem, diretamente, para o céu: as arcas das fortunas da burguesia nativa e da comunidade internacional de negócios.

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