São Paulo, segunda-feira, 28 de fevereiro de 1994
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Batina da morte

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA – Convido o leitor a acompanhar-me numa escapada para o deserto. Olhemos para a frente, para trás, para os lados. Certifiquemo-nos de que ninguém nos observa. É aqui, cercado de dunas, longe de qualquer testemunha, principalmente de meu sogro, que desejo sussurar-lhes meu tema de hoje. Tratarei da passagem de d. Luciano Mendes de Almeida por Brasília, semana passada.
Exponho-me à sanha dos católicos para confessar-lhes o que me veio à cabeça quando li nos jornais as palavras do doce bispo. Súbito, vi em d. Luciano um Amaral Netto de batina. Que meu sogro, Darione, não me ouça. Ministro da eucaristia, decerto odiará o que direi a seguir.
A esta altura, meus companheiros de deserto devem estar se perguntado por que enxerguei no santo rosto de d. Luciano o semblante do deputado da pena de morte. Eu explico: nosso bispo criticou a campanha de combate à Aids. Revelou-se contrário à distribuição de camisinhas.
Repita-se algo do que disse: "Aproveitamos o medo da Aids para fazer a difusão do sexo livre". Não é só. O piedoso católico de que nos ocupamos foi implacável com os brasileiros que apreciam o sexo variado.
Voz mansa, d. Luciano afirmou que o dinheiro gasto na compra e distribuição de camisinhas poderia ter melhor serventia. Suas palavras supunham o Brasil como um imenso seminário. Um casto e imaculado seminário. Seu discurso ignorava o óbvio: faz-se sexo dos pampas gaúchos à selva amazônica.
As estatísticas registram, nos últimos 14 anos, o surgimento de 45,8 mil casos de Aids entre nós. Desse total, 18,6 mil resultaram em mortes. Insisto: mais de 18 mil doentes estão sob lápides. Mas as milhares de sepulturas não sensibilizaram d. Luciano. O presidente da CNBB atacou a distribuição de camisinhas como se falasse de um comprimido para gripe.
Registre-se uma agravante, sob pena de sermos injustos com Amaral Netto. O deputado defende a execução de criminosos irrecuperáveis. As palavras de d. Luciano o deixaram na posição de carrasco de doentes, de algoz de inocentes. Atrevo-me a sugerir ao doce bispo que releia os dez mandamentos. Melhor: recomendo que se detenha no sexto: "Não matarás". Novamente: "Não matarás". Mais uma vez: "Não matarás".

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