São Paulo, sábado, 5 de março de 1994
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Matthew Modine compara Altman a Kubrick

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Na introdução que escreveu para uma nova edição com as nove histórias e um poema de Raymond Carver (1939-88) que adaptou para o cinema com o título de "Short Cuts - Cenas da Vida" (estréia dia 18), Robert Altman explica como os atores tiveram uma "séria colaboração" na narrativa do filme. O diretor optou por unir todos os contos numa única história, com personagens que se cruzam pela "arbitrária natureza do acaso".
Matthew Modine é um dos 22 atores principais do filme. Interpreta o Dr. Ralph Wyman, resultado da fusão de dois personagens de Carver, o marido ciumento de "Will You Please Be Quiet, Please?" e o médico de "A Small, Good Thing".
Modine já tinha trabalhado com Altman em "O Exército Inútil" (1983), além de ter sido dirigido por Jonathan Demme, Alan Parker e Stanley Kubrick ("Nascido para Matar"). O ator falou à Folha por telefone, de Nova York, onde se prepara para encarnar Jacó, num filme sobre a Bíblia dirigido por Peter Hall.
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Folha - Você já havia trabalhado antes com Robert Altman. Existe alguma improvisação no trabalho dele com os atores?
Matthew Modine - Quando fizemos "O Exército Inútil", havia improvisações. Mas acho que "Short Cuts" é o filme mais estruturado que ele já fez. Acredite se quiser. Pensamos em chamar o filme de uma peça sinfônica, com uma orquestra e Altman como maestro. Cada um de nós tinha funções musicais muito específicas.
Folha - Você interpreta um marido ciumento...
Modine - Não acho que o personagem seja ciumento. É uma pessoa que foi enganada. Mentiram para ele. Se você construir uma casa sobre uma fundação fraca, a casa vai cair. Se você tem uma relação com alguém e a pessoa mente para você, a situação é a mesma. Você tem que consertar ou a casa cai. Por isso, é importante para ele saber a verdade.
Folha - Você já tinha lido os textos de Raymond Carver?
Modine - Já. As histórias são diferentes de tudo que tinha lido antes. Nunca li ninguém que fizesse as observações que ele faz sobre a vida. Acho que é por isso que são contos: rápidas olhadas na vida dessas pessoas. Nunca senti que ele estivesse julgando a vida delas; estava apenas documentando.
Folha - O que você acha da adaptação que Altman fez dessas histórias, transformando todas numa única narrativa?
Modine - Acho fantástico. Continuo sentindo o filme como um musical sem música, embora você tenha Annie Ross, a cantora, que fornece uma espécie de orquestração rap, jazzística.
Folha - Altman decidiu transpor a ação para Los Angeles. Você acha que o filme é um retrato realista da cidade?
Modine - Não apenas da Los Angeles. Acho que é uma reflexão precisa da vida nos EUA hoje. Em qualquer cidade.Poderia ser Atlanta, Dallas, Nova York ou Chicago.
Folha - Você acha que os problemas sociais dos grandes centros urbanos americanos, como as revoltas raciais de Los Angeles, têm solução?
Modine - Não sei como resolver os problemas. Mas os Estados Unidos são um país tão jovem, que essas revoltas ajudaram a trazer alguma maturidade. É um processo difícil e longo. As pessoas têm que trabalhar muito e lutar para fazer jus à Constituição sobre a qual este país foi criado.
Folha - Quem são, na sua opinião, os maiores cineastas americanos hoje?
Modine - O óbvio: Scorsese, Spielberg, Altman, espero que Alan Rudolph tenha um lugar entre os maiores, Stanley Kubrick.
Folha - Por que você acha que Robert Altman foi rejeitado por tantos anos nos EUA pelo sistema de produção? Por que ficou tantos anos no ostracismo?
Modine - Graças a Deus! Esse negócio de ser reconhecido em vida é uma coisa muito americana. Historicamente nenhum grande artista é reconhecido em vida. Até podem ter sido reconhecidos mas só devidamente apreciados muito mais tarde. Veja mesmo David Lean, Kurosawa ou Orson Welles. Altman está em boa companhia.
Folha - Mas se ele tivesse dinheiro para fazer mais filmes, seria bem melhor. A obra podia ser mais vasta. Não seria melhor para ele?
Modine - Não. Na verdade, Altman me disse: 'Quem tem dinheiro perde quando morre'. Se ele tivesse dinheiro, seria uma pessoa diferente. Se você lhe desse dinheiro, ele partiria para o jogo, acharia uma maneira de perdê-lo. Altman tem mais a ver com a trajetória e a batalha. Se a vida dele fosse muito confortável, não seria quem é.
Folha - Qual a diferença entre trabalhar com um diretor como Kubrick e alguém como Robert Altman?
Modine - É mais difícil falar das diferenças que das semelhanças. Nenhum dos dois faz julgamentos sobre a vida. É muito difícil fazer um filme sem dizer: 'O filme é sobre isso' ou 'Isso é certo e aquilo é errado'. É muito difícil fazer um filme que apenas pede que o espectador pense, um filme que diz: 'Olhe para isto. O que você acha?' Nenhum dos dois está interessado em filmes de propaganda. São cineastas que não têm agendas.

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