São Paulo, segunda-feira, 7 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ainda sobre os planos de saúde privados

ANTONIO PENTEADO MENDONÇA

Ainda sobre os planos de saúde privados
Querer que os planos desaúde atendam eventos não previstos coloca em risco todos os segurados
No último artigo publicado nesta Folha, eu alertava para os riscos que os titulares dos planos de saúde privados estavam sujeitos se levassem ao pé da letra a resolução do Conselho Federal de Medicina, que pretende obrigar estes planos a indenizarem todas as despesas, independentemente de estarem ou não previstas no contrato, transferindo ao médico o direito de determinar o que e como deve ser feito e pago, às custas dos garantidores dos planos.
Hoje eu ainda quero ficar no tema para explicar dois pontos que me parecem fundamentais para embasar o descabimento da resolução. O primeiro é a legalidade dos contratos e o segundo é a forma como as tarifas dos seguros de saúde e dos planos de assistência médica são elaboradas, o que faz com que uma mesma empresa possa oferecer padrões de garantias diferentes, em função do espectro das coberturas e dos custos de cada plano.
Retomando o exemplo dado numa entrevista para esta Folha: da mesma forma que uma montadora de veículos produz o carro popular, também produz o carro de luxo, e nem por isso um Fusca vai custar a mesma coisa que um Santana GLS, só porque os dois são fabricados pela Autolatina. A fábrica coloca os dois no mercado, mas é o poder aquisitivo do consumidor que vai determinar qual ele vai comprar.
Com os planos de saúde privados acontece exatamente a mesma coisa, inclusive porque eles não são obrigatórios. Obrigatória é a assistência médica-hospitalar pública, ou seja, a assistência médica-hospitalar de responsabilidade do governo, e que deve ser colocada à disposição de toda a população sem qualquer tipo de custo, já que a Constituição de 88 garante o atendimento também para quem não contribui para o INSS.
Ora, se os planos privados não são obrigatórios e se não existe uma legislação específica, determinando coberturas mínimas ou máximas, eles passam a ser regulados pela legislação ordinária brasileira, neste caso representada por um capítulo especial do direito civil, chamado direito dos contratos, que tem como base a afirmação de que a vontade das partes é a lei que regula o contrato, desde que suas cláusulas não firam uma lei em vigor.
E é aqui que a resolução do Conselho Federal de Medicina peca duas vezes. Primeiro, o Conselho não tem poder para editar leis que modifiquem o Código Civil Brasileiro. Segundo, o Conselho, ao pretender a imediata entrada em vigor de sua resolução, passou por cima do preceito constitucional que garante a não-retroatividade das leis. Ou seja, mesmo que o Conselho fizesse lei ou mesmo que o projeto de lei que está no Congresso, para regulamentar a matéria na linha da resolução, fosse aprovado, ele só teria validade para os contratos assinados após a sua promulgação, não tendo qualquer efeito sobre os contratos anteriores, o que quer dizer que ele não poderia alterar os contratos hoje em vigor, garantindo aos planos de assistência médica e aos seguros-saúde o direito de continuarem respondendo apenas e tão somente pelo pactuado originalmente.
A questão do fornecimento dos serviços de saúde é complexa e está latente no mundo inteiro. O grande desafio que se coloca não é a estatização ou a privatização dos serviços. Existem procedimentos que só podem ser bancados pelo Estado, já que seus custos inviabilizariam a ação da iniciativa privada, que, ao contrário do que pretendem algumas correntes político-filosóficas nacionais, deve ter lucro em suas atividades, e onerariam de forma injusta a sociedade, que teria que pagar preços fora de sua realidade por serviços essenciais para o seu bem-estar.
Aliás, é bom lembrar que os impostos existem exatamente para possibilitar ao Estado arcar com os custos do funcionamento da sociedade e em especial com os custos básicos, a saber, saneamento, saúde, educação e moradia, e não para pagar desmandos e loucuras megalomaníacas de eventuais detentores do poder, mas isso é outro assunto.
Voltando ao tema saúde, existe um espaço que deve ser obrigatoriamente atendido pelo Estado, que é o serviço médico-hospitalar básico, e existe um espaço que pode e deve ser transferido, que é o complemento ao atendimento básico. O primeiro garante um padrão mínimo de atendimento e o segundo sofistica este padrão, de acordo com o plano de cada segurado.
Outra questão que se coloca é a de quem deve fornecer o atendimento básico: o Estado ou a iniciativa privada, que depois seria ressarcida pelo Estado? Aqui também a discussão foge do tema do artigo.
Os planos de saúde, quer gerenciados por assistências médicas, quer de seguradoras, têm estrutura equivalente. São grandes fundos, compostos pela contribuição proporcional de seus membros, destinados a fazer frente a prejuízos que estes membros venham a sofrer, em função de eventos previstos nos contratos. Assim, querer que os planos atendam eventos que não foram previstos é colocar em risco toda a massa segurada, em benefício de alguns poucos que não contribuíram proporcionalmente para fazer frente aos seus prejuízos.
Além de ameaçar uma imensa maioria de segurados, que estão contribuindo de forma correta e de acordo com um contrato legal, com o risco de ficarem a ver navios ao precisarem dos seus planos, a resolução do Conselho Federal de Medicina é injusta, já que privilegia uma minoria, que não contribuiu de forma proporcional aos seus riscos, onerando os demais com as diferenças extraordinárias consequentes do pagamento destes procedimentos incluídos depois do jogo começado.
O que fica claro, depois de uma análise mais profunda da resolução do Conselho Federal de Medicina, é que os seus diretores foram muito mal assessorados sobre a matéria. Além de sujeitarem segurados que os levassem ao pé da letra a prejuízos evitáveis, se não tivessem feito o estardalhaço que fizeram, também colocaram em risco o futuro de todo um sistema que hoje responde por parte muito mais do que significativa dos totais desembolsados em nome da saúde pública e que, ainda por cima, está preservando o INSS, ao não cobrar as despesas havidas com os seus segurados. De acordo com a lei, seriam passíveis de ressarcimento pelo governo, em função de sub-rogação de direitos.
Finalmente, colocaram em risco a estabilidade econômica de milhares de médicos, que têm a maior parte de seus proventos oriunda dos convênios com seguradoras, cooperativas e empresas de assistência médica, já que a implementação da resolução significaria com certeza a suspensão imediata de novos planos, bem como a revisão dos já em vigor, incluídos aí os contratos com médicos, hospitais, laboratórios e os demais integrantes do sistema de saúde mantido pela iniciativa privada.
O único ponto positivo de todo o episódio é que ele abriu uma discussão que precisava começar, mas que poderia ter sido aberta de forma não traumática, ao contrário do que aconteceu. Ninguém discute que o sistema de saúde privado precisa ser aperfeiçoado e que o sistema público faliu. O importante é que as soluções sejam encontradas com calma, porque qualquer precipitação pode significar a volta para as filas do INPS de milhões de brasileiros, que hoje são atendidos em hospitais e por médicos fora do alcance deles até pouquíssimos anos atrás.

Texto Anterior: De olho no Brasil; Leva o melhor; Visitantes portugueses; Crescimento indiano; Papéis negociados; Na feira; Analisando o consumidor; Troca de experiência
Próximo Texto: Itamar beneficia advogados
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.